Capítulo 103

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        A lenda humana contava que a inteligência surgira há milhares de anos. Ou ela era fruto do acaso de Deus ou do Seu artificio, não importava, a Humanidade era fruto uDele e, por se-lo, era eterna como Ele. E nesse vai e vem, nascer e morrer aqui e acolá, de uns e de outros, a criação mais fiel Dele evoluíra e construíra a civilização atual.
        Mas haviam aqueles que não acreditavam nessa construção fabulosa, nessa diretriz superior e exata de todas as coisas, e defendiam que por uma disposição categórica do acaso o homem mudara o mundo. Havia lógica em qualquer crença, até que se morresse. Porquê apesar de toda a sabedoria que se acreditava possuir, por herança ou acaso, todos morreriam um dia e qualquer homem, por mais sábio ou ignorante que fosse enfrentaria essa transição, exatamente como há milhares de anos acontecia.
         E ela era igual para todos, para os que confiavam que a vida se encerrava no apagar da chama, ou para aqueles que confiavam que a chama não se apagava; a única diferença era onde e como.
         Adriano estava confuso, perguntando mais para si mesmo do que para Ruy:
         - Eu morri? Morri assim, de repente? Então a vida é isso? E tudo o que fui, tudo o que fiz, o que vivi, tudo que fez parte de mim se acabou, assim, sem mais nem menos?  Então eu não existo mais! É isso? A morte é esse clic repentino que apaga nosso rastro neste mundo? E tudo se acaba num piscar de olhos, acordamos num outro mundo, e estamos aqui sem de fato estar? E esta vida é escolha nossa? Fruto do mérito? Talvez consequência da inteligência ? Ou seria simplesmente sorte? Quiça uma sina azarada.
E perguntava-se por que resolvera fazer as escolhas que fizera quando poderia ter feito outras. Deus havia lhe feito alguma revelação? Algum pedido especial? Não! Ele nunca lhe dera qualquer conselho ou instrução, e por isso se perguntava se tinha valido a pena a vida que escolhera para si. Por que decidira ser padre e não um professor? O que o conduzira para fazer as escolhas que fizera?
         Contemplou seu corpo embrulhado pelas roseiras que foram alvo de seu desvelo por anos, e que agora sacrificara. Se estavam fadadas a perecer sob seu peso, porque dispensara tanto tempo de sua preciosa existência à elas? Porquê agora sabia o quão valioso era o tempo! Eterna era a Humanidade como uma Criação e não o homem em si.
          Viu uma claridade esbranquiçada iluminar o salão onde seu corpo jazia no seu derradeiro leito e envolvida por ela, Salamandra entrar acompanhada de Miloch. Correu ao seu encontro esperançoso de que ela, por ser um ente celestial, pudesse vê-lo e ouvi-lo, mas foi ignorado. Ah, como era doloroso morrer! Lembrou-se dos pergaminhos que agora nunca chegariam às mãos dela. Como gostaria de ter tido tempo de tê-los entregue, para saber o que diziam porquê parte deles estavam escritos num dialeto que ninguém que contratara conseguira decifrar. Talvez, ela, agora renascida pudesse fazer uma interpretação atualizada das palavras sem sentido.
A viu linda, envolta num luz resplandecente fazer uma discreta reverência à sua urna funerária sem se aproximar dela e entendeu que todo o tempo vivido ao lado daquela criatura excepcional antes de ter sido um castigo, tinha sido uma providencia Divina para ensina-lo a caminhar dentro da Verdade, do Bem e do Belo.
        E repentinamente despertou para o fato de que Ruy era o único que parecia perceber que ele continuava vivendo, apesar de morto. E se Ruy podia interagir com ele, que estava morto, era porquê o surfista também havia morrido!
         Adriano, que sempre se perguntara como seria aquele momento derradeiro, entendeu que morrer era sofrer o luto do vazio, porquê a partir daquele dia passou a viver numa dimensão onde só ele e o surfista existiam. Estavam sempre em companhia um do outro, parte do tempo o surfista o assistia nos seus compromissos como bispo, a outra parte era ele que assistia Ruy surfar ondas gigantescas. E assim se passaram cinquenta dias cumprindo religiosamente a rotina de sempre, e dentro dela o que lhe causava mais satisfação era ficar sentado na sua cadeira de espaldar alto, talhada no mogno, herança do bispo a quem sucedera. Se não fosse pela completa indiferença de todos à sua presença, diria que tudo continuava como sempre fora, e poderia permanecer ali eternamente se essa decisão só dependesse dele. O preço de sua nova vida era toda sua antiga vida, e se perguntava se valeria a pena paga-lo. Salamandra sempre tivera razão; não era fácil ir embora desta vida querendo ficar nela. 
         Os dias se passavam numa grande paz, sem qualquer atropelo. Até que numa manhã luminosa, Ruy o convidou para um passeio. Agora apreciava a companhia dele, instruída, quase sábia, muito diferente do surfista debochado de antes.
         Ao fim de uma breve caminhada, tiveram que transpor uma pequena porta de madeira, semelhante a uma janela grande. E Adriano se viu numa alameda de arvores gigantes que se fechavam, mas que não impediam o sol de iluminar o caminho, cercado de flores.
          - Eu preciso partir, meu tempo se cumpriu. - Disse Ruy, com um sorriso.
           - Você tem que ir?
           - Não tenho, mas quero. Uma nova vida me espera.
           - Você sabe que se for não será mais o mesmo, né?
           - Eu sei. Mas acredito que o pensamento vive por toda a eternidade, então nunca deixaremos de ser o que somos.
           Adriano lembrou-se de uma conversa que tivera com Salamandra onde ela afirmara que a vida após a morte era o mundo do pensamento, que ele era o retrato fiel da alma de cada um; nada existia de per si, e tudo podia existir, porquê o homem dependia de si mesmo.
           Surpreso, viu um rio surgir a frente deles, de águas transparentes e seixos brancos, exatamente como Salamandra havia descrito numa conversa que tiveram sobre a vida após a morte. Naquela mesma fria manhã outonal ela lhe revelara que as vestes mortuárias mudavam de cor ao longo da travessia e cada roupa adotava um tom de cor diferente de acordo com o significado dos pecados.
           Viu Ruy se dirigir para as águas reveladoras:
           - Quando chegar sua hora vem, sem medo, confie no bispo que você é.
           Apreensivo, viu o surfista adentrar no rio para em seguida desaparecer e concluiu que ele era uma pessoa afeita às águas, natural que se sentisse confortável com a travessia. Mas ele era um homem que aguardava que Deus o resgatasse, como lhe fora prometido.
          Voltou no caminho até a pequena porta de madeira, se curvou para caber nela e se viu no seu gabinete, só que agora completamente sozinho.
          Procurou o arranjo de flores que mantinha fresco desde que Salamandra o aconselhara a faze-lo para afastar o mal, mas o vaso havia desaparecido. Também a almofada que usava para apoiar o pescoço não estava mais lá na cadeira. Procurou por sua tesoura de jardinagem, sua caixa de charutos, sua xícara casca de ovo onde todos os dias tomava o chá das cinco, e não os encontrou.
Viu Renzo entrar no gabinete acompanhando de quatro homens, já ia perguntar onde estavam seus pertences quando os viu levantarem sua cadeira. Ordenou para que a largassem onde estava, se agarrou a ela, lutou, esbravejou, mas a levaram embora.
          Olhou em torno, profundamente abalado com aquela invasão de privacidade, com a solidão que começava a pesar e pediu para morrer.
           Porque era assim que acontecia, a primeira morte era a despedida da alma de seu corpo, a segunda era a despedida da alma deste mundo.
           Resignado com a própria morte fisica, concluiu que permanecer voluntariamente naquela transição começava a causar-lhe mais tristeza do que satisfação, e concluiu que partir como Ruy talvez fosse o melhor a fazer.
Voltou a atravessar a pequena porta de madeira, a andar pela alameda florida até que chegou ao leito do rio. Parou, hesitante, perguntando-se se seu desvirginamento macularia sua mortalha e qual a cor dela quando chegasse a outra margem.
        Deu um profundo suspiro, olhou para trás, sentindo uma imensa saudade de si mesmo, então entrou no rio.

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