Capítulo 23

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        Deixou o prédio do escritório. Era acelerado e por isso as vezes freava para não avançar um sinal, e arrancava antes dos outros numa pressa sem razão de ser, só porque gostava da sensação que a velocidade lhe causava.    Mas naquela noite dirigia devagar, observando as ruas e o movimento dos carros e das pessoas. Foi então que viu Salamandra do outro lado da rua, e quando ela se virou para o lado e tocou o braço de um homem. Sentiu o sangue congelar nas veias, e descongelar quando reconheceu nele um cliente. A curva obrigatória a frente os tirou do foco dos retrovisores, e a partir dali só na sua imaginação continuou a enxergá-los, e viu coisas que o enfureceu. Acelerou para retornar, fez ultrapassagens arriscadas, correu como louco, mas quando conseguiu voltar era tarde demais, o casal havia desaparecido na noite, na emaranhado das ruas.
        Ainda rodou pelas ruas adjacentes na tentativa de avistá-los, mas inutilmente. Uma pergunta martelava em sua mente: o que sua mulher fazia com um cliente seu? Qual era a hipótese mais sensata para o que acabara de ver? E concluiu que não havia explicação para aquele fato. Não, não havia! Perdido em si mesmo, e nas suas tentativas de explicar o inexplicável e de negar o inegável, corria para casa, para surpreendê-la. Queria confirmar o que não queria saber, queria saber o que não suportaria confirmar. E não sabia como escapar daquela cilada.
        Chegou em casa e tomou um gole de uísque para suavizar as asperezas do mundo, e a outra dose foi para amortecer a descoberta que acabara de fazer. Tinha que acalmar seu coração acelerado e por isso bebeu a terceira dose. O quarto gole foi para embotar a razão para pensar menos. E a partir da quinta dose, que também bebeu de uma vez, perdeu os motivos pelos quais bebeu outras tantas. E quando a viu a sua frente achou que estava sonhando. Ela só podia ser uma miragem, porque próximo a ela havia um dragão dourado, com as asas abertas, imóvel, observando-o.
         - Fala alguma coisa. – pediu com a voz engrolada, se odiando por não conseguir calcular o tempo transcorrido do momento que a avistara com um cliente e agora, acompanhada por aquele lagarto gigante.
        Esteve o tempo todo esperando ela chegar, espiando a cada minuto o relógio, com a impressão que as horas não passavam, na expectativa de vê-la chegar, mas por algum motivo fracassara na sua vigília e acabara por ser pego de surpresa! Que mulher danada aquela! E aquele dragão de aparência bondosa, que de tão dourado lhe ofuscava a visão! E concluiu que devia ter bebido um pouco demais porque dragão nenhum tinha aquela cara de bonzinho.
        Ela também o encarava sorrindo, cheia de compreensão, de amor para dar. Só podia estar bêbado! Mas não estava, concluiu quando viu o dragão acompanhá-la e voltar com ela segundos depois. Era um dragão poderoso aquele, porque podia sentir seu bafo quente quando respirava. Mas seu aspecto era bondoso e parecia do bem. Entretanto, intuía que se tentasse qualquer coisa contra ela, ele lhe cortaria o pescoço num piscar de olhos, como no sonho que ela tivera!
       Então havia mesmo um dragão? E sua cabeça estava por um fio? Esfregou o rosto pensando que tinha bebido demais, muito mesmo, e que nunca mais tornaria a beber tanto!
         - Venha, vamos tomar um banho.
         Ele se deixou levar e se encostou nos ladrilhos frios do box para não desabar de vez. Viu ela tirar a roupa para entrar no banho também e disse:
         - Ele, não! Só você!
         - Ele quem?
Apontou para o dragão que aguardava na entrada do banheiro:
          - Ele!
         Salamandra olhou  na direção que ele apontava e não viu nada, então sorriu aliviada, concluindo que ele bebera demais.
         Sentiu que ela o ensaboava com carinho e isso o animou e tentou uma investida mais ousada, que acabou fracassada. Estava bêbado demais para levar adiante qualquer tentativa além da de se manter em pé. Ela o enxugou, e o deitou na cama. Foi até a cozinha e preparou-lhe água com o suco de um limão, que ele bebeu a contragosto. E não demorou a apagar.
         Salamandra voltou ao banheiro e depois, já de banho tomado, foi para a varanda. Aquele encontro com Murilo lhe trouxera parte do seu passado que ela gostava de lembrar, mas com ele também renascia a parte que gostaria de nunca ter vivido. Porque esse tempo sombrio de sua vida era envolto em mistérios, e muita dor.
          Cheia de tristeza, mais uma vez lembrou-se dos anos em que vivera num mundo de pesadelo, fora da realidade, amarrada como um bicho raivoso, que as pessoas não matavam porque ainda lhe restava alguma aparência humana. Ela não sabia quem era, nem quando, nem onde nascera, e nem de quem. Era um bicho, sem ser um bicho. E comia porque sentia fome e dormia porque sentia sono. Mas naquele dia acordara sem os grilhões que a prendiam àquele casebre. E por puro instinto de liberdade, descera o morro correndo e entrara na igreja.
Fechou os olhos, sem querer lembrar daqueles tempos sombrios.
         Voltou a atualidade de seu ser, ligou o celular e viu a mensagem: "Te espero amanhã, as 8 horas".
E pensou que enquanto não esclarecesse todo o passado, sua vida seria precária, e ela jamais se libertaria daquela escravidão.

SalamandraOnde histórias criam vida. Descubra agora