Capítulo 105

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Miloch andava de um lado para outro, apoquentado. Foram ao velório de Adriano, por quem, aliás, nunca nutrira simpatia porque sempre desconfiara que fosse apaixonado por sua mulher. Lembrou-se de alguns episódios patrocinados por ele onde, quando não a desafiava, estava a debochar dela, exatamente como um homem apaixonado, despeitado e desprezado fazia. Mas agora ele estava fora de combate, e o melhor a fazer era esquecer as diferenças e deixa-lo descansar em paz. E sua instância sempre fora puramente espiritual, diferentemente de Murilo, que não se fazia de rogado e caía de pau em cima da sua mulher sempre que tinha oportunidade, este sim era um adversário com quem devia se preocupar.
Espiou o celular pela centésima vez, nada, nenhum sinal dela. Que mulher difícil aquela a quem se rendera. Com tantas outras gravitando serenas ao seu redor, escolhera o hecatombe. Mas quando a perseguiu depois de te-la visto no salão paroquial, no aniversário de Renzo, foi porquê uma estranha cegueira se instalara nele apagando o brilho de todas as coisas e de todas as outras. E como sobreviver sem luz? E a partir dali nada mais teve valor sem ela; o amor o havia arrebatado. Sim, era apaixonado por ela!
Paixão era uma cegueira interna, da alma, cuja única cura se encontrava em deixar de senti-la. Mas só de se pensar em deixar de sentir o que se sentia, o remédio virava veneno e ficava-se ainda mais doente. E com Miloch não era diferente.
Ia espiar novamente o celular quando ouviu a chave girar na maçaneta da porta; jogou o telefone longe e se recostou no sofá como se ali estivesse relaxando há muito tempo.
- Oi, moço bonito. - Disse ela, gostando do que via. Agradava-lhe sobremaneira os traços fisionômicos dele e suas tentativas de disfarçar o ciúmes. 
Se aproximou dela, investigativo, sondando seu estado de espirito, sua disponibilidade para um colóquio menos formal e sentiu o cheiro de outro homem e como um afrodisíaco poderoso, sentiu seus nervos imediatamente se retesarem ao ponto de doer. No caldeirão que era sua alma o ciúmes e o desejo se misturaram criando uma poderosa alquimia que iria envenena-lo se não a vomitasse.
Também nela, o desejo contido minutos antes por questões racionais eclodiu como uma barragem, sem controle, sob o peso de si mesmo. E nada fez além de permitir o acesso e de suportar a carga das investidas, e quando o prazer dele se derramou em suas entranhas, desejou que fosse o bastante para apagar o rastro de Adriano de seu corpo.
Tomaram banho juntos, lavando e massageando um ao outro, desfrutando da intimidade que só pessoas apaixonadas sentiam. Depois se vestiram e correram para o teatro.
O palco, ah! o palco, armazém fictício das desordens que inquietavam o ser humano. Era naquele tablado que alguns representavam as inquietudes de todos, numa cartase depurativa, que distraía enquanto criava a falsa ilusão de cura.
Sentaram-se na primeira fila, de mãos dadas, a atmosfera amorosa havia sido restabelecida entre eles como sempre acontecia quando se provavam. Mas aquele clima de harmonia logo se dissipou.
Salamandra percebeu um estranho movimento na lateral do palco, em seguida viu Théo aproximar-se:
- Margot está te chamando.
Ao se aproximar do camarote ouviu os soluços dela e soube que não foram pressentimentos, intuições, palpites ou sensações que tivera, Ruy também havia morrido.
Agradeceu por não ter sido designada para destruir a felicidade da estreante de atriz, mas de ser a encarregada de mante-la de pé. 
Quando entrou, Margot correu para abraça-la. Seu corpo, sacudido por soluços, parecia menor, quase infantil.
- Ele morreu, bruxinha, nosso surfista morreu...
Salamandra fechou os olhos, concentrando-se, na tentativa de atrair para si a dor de Margot, mas aquela dor era indivisível, só se podia senti-la integralmente e solitariamente.
Ela passava continuamente a mão no rosto, tentando limpar as lagrimas que inundavam seus olhos borrados pela maquiagem desfeita. Havia muita dor naquele pranto porquê a morte do irmão também encerrava abruptamente os sonhos juvenis de Margot.
Alguém gritou no corredor que faltavam quinze minutos para as cortinas se abrirem.
- Não posso estrear hoje. Hoje, não! Essa história de que o show deve continuar é uma lenda.
Salamandra a levou para um canto onde pudessem chorar a vontade, sem testemunhas, e choraram. Se Margot soubesse o que ela sabia de Ruy, talvez sofresse menos, mas a cada um era permitido sentir do que suas lembranças sentiam falta. No entanto, podia antecipar-lhe o que sabia dele dali em diante.
          - Existem mundos maravilhosos e fascinantes, mas existe um mundo infinitamente mais misterioso e atraente: o Céu que está dentro de você. - E tocando sua barriga,  continuou:
- Vou contar-lhe um segredo: ele já está de volta, agora não mais como seu irmão, mas como seu filho. E chorar tanto assim não faz bem à ele.
Salamandra sabia que em média os espíritos levavam cinquenta anos para reencarnarem, para que tivessem tempo de se renovarem, de se esquecerem completamente de quem haviam sido, para não herdarem suas mazelas na nova vida. Mas haviam aqueles que tinham uma condição especial e, por isso, tinham uma licença especial para renascer quando desejassem. Eram espíritos que já não nasciam para evoluirem, mas para fazerem outros felizes.
Aquela revelação inesperada trouxe o consolo que Margot julgara impossível. Suas esperanças no futuro lhe foram restituídas milagrosamente e já podia sentir a energia para enfrentar o palco, renovada.
- Esse será nosso segredo! Eu prometo! - Disse Margot em tom solene. Então, passou uma das mãos sobre a barriga, enquanto a outra segurava o talismã:
- Eu e ele te amamos, Salamandra!
No corredor a voz avisou que faltavam cinco minutos para as cortinas se abrirem.
- Acho que preciso correr para retocar a maquiagem. Mas o segredo é só sobre a identidade dele, né? Eu posso contar para o Théo que estou grávida?
Viu Salamandra acenar que sim, e a abraçou antes de se afastar serelepe e saltitante.
Margot era uma daquelas pessoas especiais, que haviam nascido com a felicidade no DNA.

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