Ruy desembarcou no aeroporto e levou algum tempo desembaraçando sua peculiar bagagem. Mas já estava acostumado com os procedimentos de embarque e desembarque, por isso os enfrentava com bom humor. Era um amante dos esportes radicais e um profissional do surfe de ondas gigantes, por isso vivia nos aeroportos mundo afora desembaraçando seus apetrechos de trabalho. Já conhecia e era conhecido pelo pessoal alfandegário, que o tratavam com familiaridade, e com os quais sempre tinha uma conversa agradável. E quando lhes davam boas vindas, após liberarem suas pranchas de surf e snowboard, Ruy agradecia asseverando que para reencontrá-los até que valia a pena pisar em terra firme.
Muitos o consideravam louco, mas tudo era só uma questão de ponto de vista, de filosofia de vida. O mar era seu espaço de fuga do árido cotidiano da vida humana e, talvez, um paralelo com o amor que gostaria de sentir por uma mulher.
A sua relação com o mar era um caso de paixão antiga, que surgira em sua vida quando ainda era um menino. As brincadeiras infantis eram-lhe enfadonhas, porque as outras crianças eram medrosas demais, e nunca acompanhavam suas ideias arriscadas, então era tudo muito previsível. Passou a recusar a pelada com os outros meninos e a ignorar o desdém das meninas puritanas para correr para a praia, e ficar admirando a proeza corajosa dos surfistas.
Sob a promessa dos pais de que ganharia uma prancha de natal se tirasse boas notas na escola, se dedicou com afinco aos estudos. Acordava e dormia debruçado sobre os livros, saiu do fundo da sala de aula para sentar-se de cara com o professor e em vez de lanchar no recreio corria para a biblioteca da escola. E até ele mesmo se surpreendeu quando num piscar de olhos estava surfando marolas com uma prancha de isopor. E as pequenas ondas o foram arrastando para as maiores ondas do planeta. E nunca mais conseguiu se libertar daquela sensação de quase morte.
Mas não era louco, longe disso, era excepcionalmente cuidadoso, paciente e desconfiado. Mas apesar de cauteloso, de sentir muito medo e de respeitar o mar, gostava da sensação que o risco extremo causava.
Como surfista dessa modalidade não tinha garantias, pois era tudo muito imprevisível. Ao ser puxado por um jet sky até ondas de vinte metros de altura sentia o espectro da morte tocá-lo. Mas era justamente a morte de sobreaviso todas as vezes que enfrentava as ondas, que o mantinha mais vivo que nunca. E o frio na barriga o mantinha aquecido mesmo fora de perigo e já distante da ameaça.
Na maioria das vezes voava da prancha e era tragado por um turbilhão que o chacoalhava como um liquidificador. Quando isso acontecia era sinistro. Naqueles instantes em que seus pulmões estufavam com oxigênio saturado, fechava os olhos para não morrer com eles esbugalhados e se entregava a Deus dará.
Na sua modalidade de esporte não tinha que se preocupar em realizar manobras radicais ou com níveis de dificuldade, só tinha que se manter o maior tempo possível em pé sobre a prancha. Mas nem sempre conseguia surfar bem a parte crítica da onda e segurar a pancada dela, então mergulhava por longos minutos num redemoinho de sal e areia. Nesses momentos as longas horas de treinamento de mergulho em apnéia e o ioga eram os únicos recursos que dispunha para se manter vivo até que pudesse emergir e ser arrastado para fora d'agua por um jet sky. E ao chegar na areia, muitas vezes sangrando, só tinha uma certeza, nunca mais tornaria a fazer aquilo. Mas passado um tempo, tempo da formação de uma nova onda gigante, ele apagava de sua memória o último evento e partia ao seu encontro feliz, como um homem apaixonado vai ao encontro da mulher que turvaria sua razão.
A diferença entre a adrenalina e outras drogas era que a primeira despertava os sentidos, enquanto as demais entorpeciam, mas ambas eram viciantes. E ele era viciado em boa adrenalina. E por isso vivia perseguindo as maiores ondas e onde elas estivessem, ele estaria. Como nunca sabia onde aconteceria o fenômeno, monitorava os mares ao redor do mundo para correr para cair na água, mas não sem antes enfrentar os aeroportos; eram os ossos do seu ofício, que suportava com bom humor.
E quando não estava na crista dessas ondulações gigantescas, estava praticando snowboard na superfície nevosa das encostas de montanhas. O helicóptero o deixava no cimo de penhascos, que descia vertiginosamente. E essa busca quase diária da submissão da natureza o tornara solitário.
Até que tentara firmar um compromisso com alguma mulher, mas ao perceber que todas acabariam por querê-lo para si mesmas, desfazia o nó e seguia seu caminho, fiel à sua lenda pessoal. Uma mulher para sucumbi-lo teria que ser mais grandiosa que o mar furioso e os mistérios das montanhas de gelo que enfrentava, e essa mulher estava por nascer.
E o mundo da sua infância, tão maçante, se tornara um lugar repleto de paz, onde podia descansar do universo aliciante que o arrebatava. Mas essa sensação de bem-estar e de segurança logo o incomodavam, porque seus pés eram pranchas e só conseguia se equilibrar sobre a água, sólida ou líquida.
Ele era assim, destemido e arrojado e seria totalmente livre se não tivesse um ponto fraco: Margot. Sempre antes de deslizar no mar ou na neve ao redor do mundo seu último pensamento era para ela. E agora estava a segundos de reencontrá-la!
Ruy abriu a porta do apartamento sem usar suas chaves e viu roupas e sapatos espalhados pela sala. Na cozinha, a louça por lavar estava empilhada, e na geladeira uma champanhe pela metade e um pedaço de pizza, jaziam. No quarto, a bagunça era tanta que até parecia organizada. E concluiu, sorrindo, que aquela era Margot; as funções básicas da sobrevivência a entediavam e a ordem doméstica não existia. A única rotina que cumpria com prazer era aquela exigida de uma atriz: ler e reler os textos até decorá-los, para então impregná-los de sentimentos. E defendia fervorosamente que interpretar e impregnar eram coisas diferentes; o primeiro era razão, o segundo, coração.
Ruy se deteve na porta do banheiro para ouvi-la cantarolar debaixo do chuveiro. Ela era adorável! E reconheceu que ela lhe fazia muita falta. Se tinha um medo na vida era o de morrer de repente, sem se despedir dela. Se jogou no sofá da sala, para esperá-la.
Margot saiu do banheiro e deu um grito quando se deparou com ele. Ruy, de um pulo, a abraçou rindo, enquanto ela tremia do susto.
- Como você chega assim, sem avisar?
- E desde quando preciso avisar que estou chegando, irmãzinha?
Margot se sentou no sofá para desacelerar o coração. E aproveitou para mapeá-lo para ver se tinha uma nova cicatriz, tatuagem ou marca, mas parecia visivelmente igual. Então fixou seus olhos nos deles, para radiografar seu coração, e soube que continuava o mesmo solitário de sempre. E mais calma, sorriu para ele. Como gostava daquela pessoa forte, destemida e verdadeira! Seu irmão era lindo! E o amava tanto!
- Achei que ainda estivesse em Nazaré.
- A onda passou, então resolvi ver como você está. E vejo que você está muito bem, mais linda do que nunca!
- Você está unindo o útil ao agradável! - retrucou, fingindo-se magoada.
- Se quiser deixo o útil para lá...
- Nem pensar! E tem uma pessoa muito especial que quero que conheça.
- Você não vai querer me arrumar a uma mulher a essa altura da vida, ou vai? Só me faltava essa!
- Confie em mim. Mas agora vamos brindar com champanhe. - e serviu o resto de champanhe que nem mais borbulhas tinha.
E Ruy ficou em dúvida se aquela expressão suplicante era genuína, ou era uma impregnação da atriz. E acabou cedendo ao apelo da irmã. Horas depois deixaram o apartamento rumo a festa na nova casa de Murilo.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.