Capítulo 72

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Ruy viu Salamandra deixar a festa e sentiu-se decepcionado. Era um homem livre, que fazia o que queria, que não se prendia a nada e nem a ninguém. Pessoas iam e vinham de sua vida num fluxo ininterrupto e estava acostumado com esse vai  e vem.
Entendia que a vida era feita de ciclos e por isso se sentia confortável com tudo que chegava e com tudo que partia. Mas curtia cada momento um pouco mais do que as pessoas geralmente faziam, para não deixar que o tempo passasse sem que tivesse desfrutado tudo que o momento podia lhe proporcionar. Por isso vivia intensamente os sentimentos, sim, mas jamais se afogava neles, jamais! No entanto, não conseguira reter os momentos ao lado dela e detestou vê-la partir. Nem a maior onda surfada fora tão fulgaz! E pego de surpresa entendeu que podia sentar numa calçada ao seu lado e mesmo assim se sentir incrível porquê não era mais onde, mas com quem.
Espiou o salão onde sua irmã dançava, esfuziante, mas ela era assim. Havia em Margot uma alegria inesgotável que contagiava quem estivesse ao seu lado e precisava daquela influência benéfica. Quem o via tão calado, não imaginava o tanto de diálogo que se passava na sua cabeça. Somente a irmã sabia que o fato do mar estar calmo na superfície não significava que nada estivesse acontecendo em suas profundezas. Mas ela estava ocupada e lhe pedira para não atrapalhar.
Voltou para o jardim para espiar as estrelas; estar diretamente debaixo delas era-lhe indispensável para manter a sanidade mental.
   Lembrou-se do dia em que a prancha de um amigo o golpeou na cabeça como uma foice, abrindo sua moleira. O corte cicatrizou, mas o templo de energias permaneceu aberto. E a partir dali as intuições fizeram parte de sua vida como os fatos faziam, tão certos como dois e dois são quatro.
Fechou os olhos saboreando o ineditismo da agonia contida naquela despedida. E para entorpecer os sentidos bebeu além da conta; queria salopar a solidão que o consumia como um faminto, a fome.
Estava assim, já margeando a embriaguez, quando um agradável perfume o envolveu. Entreabriu os olhos e viu a pianista, amiga de Margot.
- Posso me sentar ao seu lado? - Perguntou Susan, com sua voz sempre baixa, que só subia de tom ao piano, mas só ao piano.
Ruy não ouviu, adivinhou o que ela lhe perguntara e consentiu de bom grado com aquela aproximação. Que mal lhe podia fazer aquela artista?
Susan sentou-se e observou com atenção o céu reconhecendo que dedicara tanto tempo de sua vida ao piano que deixara de conhecer as estrelas, as flores, os bichos e os homens. Lágrimas tristes brotaram de seus olhos, porque aquela arte de toda a vida já não lhe perfazia. E essa insatisfação surgira quando se deitara com Miloch; e ele estava tão bêbado  que não percebeu que era sua primeira vez! Mas para ela as sensações despertadas naquela madrugada foram tão avassaladoras que sentiu o cristal trincar e Beethoven deixar de ter prioridade em seu coração. Agora desejava algo mais, um homem de carne e osso!
Observou Ruy de esguelha e gostou das tatuagens que cobriam seus braços. Era um ser tão diametralmente oposto à ela que pareceu-lhe perfeito para rachar o cristal de vez. Bebeu seu drinque de uma vez para tomar coragem, mas sequer piscou os olhos. Estava petrificada de pavor ante a possibilidade de ser rejeitada por ele também.
Ruy a viu esvaziar o copo e gentilmente ofereceu-se para buscar outra bebida para ela.
- Não costumo beber assim, mas hoje estou precisando... - Disse, Susan, tomando de coragem, já tinha perdido tempo demais com pudores inuteis.
Ficou ali meio inclinada na cadeira, aguardando o homem de verdade retornar com a dose de álcool que a desnudaria.  
Ele voltou com mais doses numa bandeja e com um sorriso, disse:
- Não precisa consumir sua cota.
Mas Susan percebeu que era agora ou nunca mais. E bebeu todas. Logo as estrelas cresceram em brilho e as tatuagens criaram vida e começaram a dançar sobre a pele bronzeada do surfista.
- Dizem que toda tatuagem tem um porquê, é verdade?
- Creio que sim... As minhas são libertadoras porquê ressignificam o meu passado o tempo todo.
E Susan perguntou sobre os desenhos gravados na pele curtida pelo sal, encantada com as histórias por de trás delas.
- Mas qual a tatuagem mais inestimável?
       Viu Ruy levantar a camisa e mostrar-lhe as costas onde havia a imagem de um dragão dourado segurando uma esfera.
       - E essa tatuagem, por quê a fez? -
       - Certa noite sonhei que surfava uma onda em seu dorso e foi fascinante. Era um ser glorioso! Acordei exaltado, e decidi celebrar seu poder.
- Ela é linda! É a mais bonita de todas!
Ruy sentiu-se tocado pela observação gentil da pianista; ele também achava aquela a mais bela tatuagem que fizera!
- Margot me falou tanto sobre você que sinto conhece-lo há muito tempo. Adorava ouvi-la contar sobre suas aventuras e confesso que até sentia inveja de sua vida tão natural, flexível e, digamos, sensual. Certamente por isso você é tão irreverente.
- Mas sua vida deve ter sido extraordinária.
Susan distendeu os lábios num sorriso antes de dizer:
- Foi, mas meu mundo é um mundo sintético, de luzes artificiais, feito de couro e verniz. O meu é um mundo racional, o seu é instintivo.
- Você não é feliz?
- Achava que era, mas conheci um homem que mudou minha perspectiva sobre a forma como levo a minha vida.
- Eu também conheci uma mulher que puxou meu tapete.
Os sentimentos comuns criavam laços emocionais fortes, conexões súbitas, e foi o que aconteceu entre eles naquela noite em que Marte se levantava no horizonte estelar.
- Faça de conta que eu sou ela. - Pediu Susan, se aproximando dele. - E faça comigo como faria com ela...
Ruy sentiu mãos quentes e gentis fecharem seus olhos, e trocarem as suas de lugar. Sentiu nos lábios um beijo tímido e o correspondeu, mais por gentileza do que por vontade. Ela o convidava para esvaziar-se nela, na esperança de ter preenchido os seus espaços vazios.
Como o dele, o coração dela também estava bem distante dali. Desejos díspares poderiam se conjugar?
E decidiram tentar...
      

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