Enquanto se encaminhava para a casa paroquial, ia refletindo sobre sua trajetória desde que se soltara das amarras que a mantiveram prisioneira no alto da colina.
As pessoas, todas elas, possuíam inúmeras dúvidas, mas, apesar disso, tentavam desesperadamente encontrar, de imediato, a resposta para cada problema que enfrentavam. Agindo desse modo, malogravam, porque sem perceber buscavam para si mesmas o fracasso.
Seria gratificante se, diante dos vários problemas com os quais se defrontava no curso de sua vida, o ser humano encontrasse soluções adequadas para cada situação. Na verdade, porém não era tão fácil descobri-las, mesmo que se tentasse de várias formas. E se a pessoa se desesperasse os resultados eram muitas vezes imprevisíveis, podendo até resultar em tragédia.
Enquanto o auge da questão não tivesse sido atingido qualquer tentativa seria frustrada, porque tentar mudar a direção dos acontecimentos no meio do caminho era uma atitude totalmente errada, pois somente protelava o encontro da solução correta. Pobre das pessoas que imprimiam suas vontades à lei de Causa e Efeito e ao Tempo. De há muito ela aprendera duas grandes lições: uma delas era que o Tempo era o senhor da razão, e que apenas aguardar pacientemente sua passagem a maioria dos problemas se resolviam sozinhos; a outra era que carma se pagava, mas nunca se apagava.
Não precisou bater na porta para vê-la se abrir. E ali estava uma peça fundamental daquele quebra-cabeça que era sua existência. Ele sempre fora uma parte indivisível dela: ele a amarrara na árvore, a contra gosto, segundo ele; visitou-a incontáveis vezes no claustro frio e escuro do convento onde deveria morrer, mas que acabara por renascer; apresentou-lhe Murilo, o explorador de tesouros e de almas, e anos depois revelou-lhe quem era Miloch.
Renzo ofereceu-lhe a poltrona de couro enquanto se sentava num banco de madeira. Talvez fosse o hábito do sacrifício, ou o ensinamento do altruísmo que o fazia agir, refletiu Salamandra, observando que antes a coluna ereta agora se encurvava sob o peso de décadas de reflexões. Aquela alma estava envelhecendo mais rápido que o veiculo que a conduzia, porque diferentemente do que se supunha, era a alma que envelhecia, o corpo físico apenas apodrecia. Depois ofereceu-lhe uma xícara de chá, que aceitou, e ficaram algum tempo em silencio.
- Eu nem sei por onde começar.. . Mas fiquei deveras assombrado com o que vi acontecer hoje! Eu gostaria muito de entender o que aconteceu ali...
- Pode perguntar o que quiser, padre Renzo.
Ele se levantou, esticou as costas e voltou a sentar:
- Que dialeto era aquele?
- Era o idioma acadiano.
Ele a encarou por longos segundos, buscando em seus registros memoriais o alcance daquela informação e quedou-se perplexo quando os encontrou:
- Não é possível!
Ela ficou ali, quieta, esperando que ele se recompusesse e continuasse a fazer-lhe perguntas.
- Desde quando você conhece a língua acádia?
- Eu apenas entendi o que ele dizia e respondi.
- Ele quem?
- O espírito.
- O demônio?
- Não! Padre Renzo, o demônio não perde tempo com pessoas comuns como aquele homem, ele avança sobre os poderosos, sobre aqueles que comandam os demais.
- Então que espírito estava dominando aquele homem?
- Aquele homem em vidas passadas matou a sogra de fome, e ela só queria se vingar e faze-lo pedir-lhe perdão. Entendendo a origem do sofrimento de ambos, fiz ele se arrepender do seu pecado e ela aceitar que os anos de sofrimento no Inferno se deviam unicamente ao seu próprio ódio, ao seu próprio apego.
- Simples assim? - viu ela balançar a cabeça afirmativamente.
- Então você salvou aquele homem?
- Salvação é outra coisa, muito pessoal e particular, é uma relação íntima da pessoa com ela mesma e com Deus.
Como duvidar dela se havia resolvido seja lá o que fosse? E não bastava livrar a pessoa do sofrimento? Não era esse o objetivo de todo ato de caridade ao próximo e de devoção à Deus?
Salamandra observava o padre, pensando nos motivos que o convencera que suas crenças eram a verdade absoluta.
- Posso lhe fazer uma pergunta, padre Renzo?
- Claro...
- O senhor nunca pensou ter um filho?
Não, ele nunca desejara constituir uma família desde que respondera positivamente ao chamado de Deus. O significado desta renuncia era mais profundo do que era compreendido comumente; era o ato livre que tornava o coração indiviso com Deus. Porque somente um homem livre do prazeres mundanos podia viver uma experiência de profunda intimidade com Deus, que celebrava de modo inseparável o amor divino e o amor humano.
- Não - respondeu.
- Não sente falta de afeto?
- Como consagrado eu tenho um relacionamento de profunda amorosidade com Deus.
- O que diria de um padre que desejasse ter um filho?
- Certamente que ele não estaria mais disponível e livre para agir de forma apostólica.
- Não acha que é uma exigência muito dura só para estar mais perto de Deus do que todo o resto da Humanidade? Porquê certamente Deus não ama apenas aqueles que não fazem sexo.
- É claro que Deus ama a todos seus filhos, e procriar não é pecado, mas o auto controle exigido na carreira sacerdotal traz verdades profundas sobre nós mesmos, e essa opção traz bonitas realidades que outros jamais experimentarão.
Salamandra pensou em si, no fato de que nunca tivera que fazer qualquer renúncia ou sacrifício por opção, tudo sempre lhe fora imposto, apenas sobrevivera milagrosamente. Talvez houvessem existências que não podiam ser conduzidas ao bel-prazer do poder discricionário, eram condicionadas, a priori, ao inflexível pré-destino.
- Talvez no Reino dos Céus sejamos todos iguais, tendo como único centro de nossas vidas a pessoa de Deus, sendo ou não celibatários. Já pensou nisso, padre Renzo, que todo seu sacrifício pode não fazer diferença alguma?
Olhou para ela e era inegável que sabia mais que ele sobre as coisas da espiritualidade, mas já estava velho demais para questionar suas convicções e mudar qualquer coisa importante em sua vida.
- Na dúvida, prefiro continuar seguindo o baile. - Disse Renzo, dando por encerrado o assunto.
Salamandra lembrou-se de sua postura serviente naquela manhã. E fez uma descoberta surpreendente: ele era mais inflexível na sua visão do mundo do que poderia supor, era muito menos compassivo que Adriano.
Renzo nunca fora popular, talvez porque nunca tivera apetite para o poder, para a riqueza, ambição e glória, enquanto para Adriano o luxo e a paixão faziam parte da sua virtude, e só se perdia aquilo que se tinha.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.