Capítulo 31

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       Salamandra se aproximou da janela que se abria para um jardim e viu Renzo conversando com uma pessoa. A luz do dia que se rendia a noite era fugidia e por isso não conseguia ver claramente, mas percebeu a tensão que havia no ar. A pessoa gesticulava muito, enquanto Renzo permanecia imóvel. A janela fechada não lhe permitia ouvir o que falavam, mas podia deduzir que havia uma confissão desesperada para um padre compassivo.
        E pareceu ver a pessoa se ajoelhar e chorar diante da batina que Renzo sustentava com humildade. E o viu erguer as mãos para levantar aquele ser despojado de qualquer dignidade. E foi abraçado por um longo tempo. O viu se afastar e, após trocar algumas palavras com uma pessoa aparentemente acalmada, conduzi-la por entre as plantas que ornavam o jardim. E os perdeu de vista.
       Em seguida seu telefone tocou e viu que era Murilo. Atendeu prontamente e conversaram por alguns minutos. Então deixou a igreja onde Renzo era padre. Mas ao atravessar os corredores sentiu aquele maldito perfume.
       Dirigiu o carro pelas ruas da cidade pensando em Murilo, no quanto ele representava em sua vida. O conhecera algum tempo depois que saíra do convento, onde a guardaram por anos a fio depois que salvara a criança do incêndio.
        As criaturas só viviam no presente quando executavam alguma tarefa que exigisse atenção, desocupadas, resvalavam entre o passado e o futuro. Essa era uma inapelável condicionante do Tempo. E ela, invariavelmente, mergulhava nas lembranças.
        Naquele dia dos incêndios, Renzo a deixara dormir na casa paroquial. E ali passara não sabe quanto tempo, até que um dia invadiram o quarto e a tiraram dali para colocá-la numa grande casa onde antes era seu barraco, que o povo construíra em tempo recorde. E passaram a lhe dedicar uma devoção pura, como se fosse a reencarnação de alguma santa. Recebia oferendas e orações como se fosse uma deusa.
        Desorientada, via mais e mais pessoas se juntarem a outras tantas na esperança de que surgisse e começasse a dispensar graças, porque milagreira eles já sabiam que ela era. Muitos deles tinham presenciado o andarilho evaporar no ar depois de tê-la reverenciado. Tinham testemunhado, também, sua sobrevivência ao fogo, a salvação da criança e a autocombustão daqueles que arquitetaram sua morte.
Os peregrinos que chegavam de toda parte faziam fila pelas ruas da cidade e passavam silenciosos pela frente de sua casa na esperança de vê-la e no milagre que lhes concederia. E voltavam para o fim da fila que só crescia, acreditando que teriam melhor sorte se persistissem naquela romaria. Mas, a pedido de Renzo continuava reclusa, que em troca de seu isolamento cuidava pra que nada lhe faltasse.
       A missa esvaziada incomodou Adriano, que incomodou Renzo. Não havia público na igreja e nem donativos. Os fiéis de Deus se tornaram fiéis dela. E numa mudança de ordem das coisas normalmente ordenadas, ela foi levada dali para bem longe, para onde nenhum deles pudesse encontrá-la. E a trancaram num castelo de indiferença, para morrer. Mas não morreu. E viveu por muito tempo prisioneira num convento secular.
       Naquele lugar silencioso e frio ninguém conversava com ela. Tinha uma cela com cama, onde poderia dormir por séculos sem que precisasse acordar. E tudo que mais desejava era não acordar jamais. Tinha comida o suficiente para a vida toda, mas não tinha fome. Água limpa parecia jorrar da caneca, que ela nunca esvaziava. Tinha tudo que um ser humano precisava para sobreviver, mas ela queria era morrer de vez.
       Enterrada viva durante o dia, a noite ressuscitava e via diante de seus olhos desfilarem inquietantes fantasmas, que só desapareciam quando os clarins da alvorada soavam. E tinha clarividências que lhes revelavam segredos sublimes.
        Essa combinação do bem e do mal, esse conjunto de particularidades colossais e bizarras que constituíam sua pessoa, não merecia ser prolongada, concluía cheia de tristeza. Mas viu-se viver, modificando-se sem cessar, o que só acontecia com seres divinos.
      Por alguma razão que não conseguia entender acharam que tinha uma insolência estudada, uma aspereza ofensiva e que era fria demais para ser humana! E se contentaram em julgá-la por alto, e de uma vez por todas legar-lhe a metade dos pecados do mundo. E esse foi o erro delas, deixá-la entregue a luta entre o Bem e o Mal. Pois foi naquele convento esquecido do mundo, encerrada num catre, que vislumbrou a transição da noite para o dia ocorrida no mundo espiritual. E lhe foi revelado que sua permanência no mundo era uma grande profecia do advento desse mundo da luz, porquê essa mudança definitiva de Era ocorreria quando ela descerrasse a Porta da Rocha do Céu. No entanto, se esforçava para não acreditar em nada daquilo! Era apenas uma velha esquecida até pela morte!
       Mas na solidão de sua cela foi renascendo, cada dia mais forte, cada dia mais nova, cada dia mais bela. E sentiu o sangue pulsar nas veias com força. E dentes nascerem de gengivas murchas. E as carnes endurecerem e a pele esticar. Os cabelos e as unhas brotarem com viço. A voz se tornar clara, audível, aveludada. E os olhos, antes esbranquiçados, se acenderem cheios de brilho, num fulgor de esmeralda.
       E num dia qualquer entre tantos que ali passou, viu olhos espiando-a, sumindo, e outros mais espiando-a, num ritmo cada vez mais frequente. E se tornou tão frenético aquele vai e vem de olhos, que se percebeu viva, um ser que existia porque não mais esquecido.     Alguma coisa mudara nela e por consequência no mundo ao seu redor.      Ela não tinha espelho, nem onde ver sua imagem refletida, porque se tivesse também correria de si mesma como o diabo da cruz!
       E quando a libertaram do desterro, e lhe ofereceram uma chance de viver uma nova vida, com identidade, casa e liberdade, acreditou na revelação da transição e na existência da Porta da Rocha do Céu.
       E numa certa manhã, ao acordar, o primeiro rosto que viu foi o de Renzo. Ele era o único que não a espiava como se fosse uma mutante. Ele apenas a olhava e sempre tinha um sorriso compreensivo. Mas esse entendimento vinha de muito tempo, e lhe parecia que ele sabia disso.
        - Como está se sentindo? – perguntou Renzo. E viu comovido sua expressão conturbada. E para acalmá-la, disse:
        -  Confie em mim. – e viu ela concordar com a cabeça.
        E foi nesse exato momento que Renzo acabou por entender que sua maior tarefa era proteger aquela alma especial. Haveria de viver pelo tempo necessário e vencer qualquer obstáculo para cumprir aquela grandiosa  missão. E jurou a si mesmo que faria qualquer coisa por isso, qualquer coisa!
       Salamandra captou aquele sentimento de amor no coração e se deixou levar por ele e recomeçou a vida como uma nova pessoa, como a mulher renovada que agora era, apoiada na única pessoa em quem confiava, no padre Renzo.
        E num belo dia, quando deixaram o convento, juntamente com os espíritos libertados, viu que o sol banhava a construção secular com uma luz esbranquiçada, e que um dragão o abandonava para acompanhá-la.

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