Saíram andando lado a lado, sem pressa, em direção do estacionamento onde Miloch havia deixado o carro.
- Só de pensar que poderia ter matado uma pianista com sua expertise o sangue congela nas minhas veias! – viu ela sorrir, entrando no carro. – Você é uma pianista fantástica!
- Obrigada, mas é uma questão de devoção. Todos nascem dotados de algum dom, então é só uma questão de fazer mais o que mais gostamos de fazer.
- E desde quando você descobriu esse dom e passou a se dedicar a ele?
- Comecei aos 3 anos de idade.
- O quê?! – estava deveras surpreso. – Então atropelei um gênio!
Ela riu muito antes de dizer:
- Apenas uma pessoa que nasceu com uma especificidade rara.
Miloch espiou discretamente as horas e perguntou:
- Mas me diga, onde posso deixá-la?
Ela o guiou por um caminho sinuoso, estreito, rodeado por rochas e árvores que cresciam inclinadas formando um túnel matizado de vários tons de verde. Sob a sombra, plantas e musgos cresciam em profusão. Aqui e ali um raio de sol penetrando na densa vegetação iluminava o caminho que percorriam. Algumas pedras estavam suadas, pois sua superfície fria era úmida, em outras um filete de água escorria de suas fendas formando uma cascata. A subida íngreme teve fim quando chegaram a um casarão centenário.
Miloch contemplou a construção sólida reconhecendo o monumento que estudara no curso de engenharia.
- Chegamos. – disse ela, virando-se para ele. – Como posso agradecer?
- Agradecer o quê? Sou eu o devedor! O que mais posso fazer para compensá-la pelo susto de hoje?
Ela abriu a bolsa, tirou dela um convite, e disse:
- Me faria muito feliz se comparecesse a minha estreia hoje à noite. – e saiu do carro.
Miloch a viu sumir por trás de pesadas portas de madeira. Leu o convite e soube que ela se chamava Susan. A curiosidade aguçou o homem que havia nele; além de ser uma exímia pianista e de morar ali, naquele casarão emblemático, o que mais Susan teria para revelar e que ele teria prazer de conhecer? Começou a se afastar ao som de um piano que começava a tocar a 5ª Sinfonia de Beethoven. Um arrepio percorreu seu corpo e o fez estremecer levemente.
- Eu, hein! – sussurrou, ensimesmado.
Manobrou o carro e tomou o caminho de volta com o pé no freio, a descida era íngreme e já estava impressionado demais com tudo que lhe acontecera naquela manhã.
De repente, se lembrou de Salamandra, de que saíra de casa sem lhe dar bom dia. Espiou o celular e viu que não havia nenhuma mensagem. Ela cumpria exemplarmente o trato que fizeram anos atrás. E, subitamente, uma ternura imensa o invadiu. Ele a amava e sabia que era correspondido e isso era o bastante para ser feliz e ter paz. Então lembrou da chamada não atendida e o maldito ciúmes afastou a doce lembrança dela.
Entrou na empresa se desculpando pelo atraso. Só então percebeu que devia estar com uma aparência péssima porque todos pararam de fazer o que faziam e o fitaram em silencio.
- Está bom, pessoal, está tudo bem comigo, ok? Me atrasei porquê atropelei um gênio, mas o salvei em seguida. Voltem ao trabalho. – e se dirigiu para sua sala.
Fitou a prancheta onde um desenho inacabado jazia há dias. Desde a noite em que fora mordido que o seu mundo perdera o rumo. Sentia que desde então se movia como uma biruta, que não tem outra função além de indicar a direção do vento. E ele ia pra lá e pra cá ao sabor dos acontecimentos, conduzido por casualidades ou talvez fosse mais exato dizer, por tempestades! Sua vida pessoal estava de cabeça para baixo e a profissional, deixara de existir. Seu trabalho, que tanta apreciava, não o empolgava mais! Prêmios, fama, dinheiro, mulheres, nada aplacava a consumição que invadia o coração de um homem quando desconfiava da mulher amada. O homem amava assim, com posse, subjugando o outro ser. Só que era ela que comandava o show e a ele restava apenas sentir como pode ser doce morrer sem morrer de fato.
Entrou em casa desejando muito encontrá-la, mas ela não estava. E a dúvida maldosa tornou a se insinuar. Onde ela estaria? Com quem estaria? E fazendo o quê? A raiva ferveu dentro dele. E tomou uma decisão.
Adentrou no teatro e mostrando o convite foi conduzido para o seu lugar. Era o camarote mais próximo do palco, de onde podia contemplar a plateia e, sobretudo, a pianista. Susan surgiu envolta num brilho mágico, seguida por um feixe de luz. Agradeceu com um gesto os aplausos. Seus olhos, muito discretamente, se dirigiram para o camarote onde ele estava e então sentou-se ao piano. O burburinho da platéia foi subitamente interrompido com o apagar das luzes. O silêncio se fez ouvir. Então o show de Susan começou, show esse que se prolongaria madrugada adentro.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.