Capítulo 2

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       No meio da noite, Miloch acordou com dor. Sentiu seu peito arder e quando tentou se mexer percebeu que estava misteriosamente paralisado.
Tentou chamar por ela, mas não tinha voz. Tentou mover-se, mas não conseguiu. Som? Movimento? Nenhum! Só o pensamento livre e desimpedido! E seu pensamento estava onde seu corpo não estava e ele viveu um tempo passado, perdido nas Eras, um mundo remoto de vidas que existiram.
Se viu vagando como um cego indefeso num nevoeiro denso e frio. Estava perdido e sozinho num mundo onde nada existia além dele.
Mas eis que, de repente, um fecho de luz o salvou da escuridão e se viu montado no dorso de um resplandecente dragão dourado, e como um guerreiro, empunhando uma espada reluzente, lutava contra gigantes das trevas.
E como num rolo de filme, as cenas surgiam e desapareciam à sua frente, oras abatendo-o mortalmente no coração, oras ressuscitando-o para derrotar seus algozes. Aquela era uma batalha inglória.
        Acordou com a mão quente de Salamandra sobre a mordida, ainda dominado por aquela estranheza que os sonhos muito reais causavam.
       - Tive um sonho estranho. Havia um dragão dourado e eu era um guerreiro lutando contra dragões vermelhos e pretos. E não haviam vencedores...
Gotas de suor brotavam de sua testa e começavam a escorrer por sua fronte. Parecia, ainda, dominado pelo evento da fantasia e, por isso, Salamandra disse:
       - Mas acordou dele, pode voltar a dormir e a sonhar novos sonhos.
       O abraçou e ele voltou a dormir. Os homens dormem rápido, algumas mulheres também, e ela era uma delas.
Mas aquela não foi uma noite tranquila. Ela também acordou agitada porque sentiu o mundo tremer e um calor anormal cobrir seu corpo. Acordou suando muito. E foi então que viu que Miloch tremia ardendo em febre. Tocou nele e o viu abrir os olhos e em seguida dizer:
        - Eu sei quem você é!
        Ela viu olhos vidrados fixos nela e percebeu que ele delirava. Tinha o rosto afogueado e a respiração ofegante. Seus cabelos negros se grudavam na testa úmida. Tentou tirá-lo daquele transe, mas não conseguiu. Ele estava mergulhado num pesadelo febril.
        De repente, viu sangue na mão e percebeu que da ferida escorria um filete da seiva vermelha. Olhou para ele que não tirava os olhos vidrados dela. Era o olhar de um ser ausente, transmutado.
Sem perder mais tempo correu para encher a banheira com água morna o bastante para cobrir-lhe as virilhas. Em seguida voltou ao quarto e foi tirando-lhe o pijama suado. Ele se entregava docilmente, repetindo sem parar que sabia quem ela era.
        Miloch era um homem alto e forte e teve alguma dificuldade para tirá-lo da cama e deitá-lo na banheira. Mas assim que seu corpo teve contato com a água morna a febre baixou. Então seus olhos deixaram o mundo dos perdidos e ele a fitou desconcertado. E ela, mais do que nunca, sentiu um profundo amor irradiar do seu espírito. Não se tratava de um amor qualquer, era mais do que um amor comum, era um bem querer enraizado em sua alma fazia séculos.
        - E agora, o que fazemos? – perguntou, parecendo um menino desorientado.
        - Agora vou enxugar você, vestir você e vamos voltar a dormir.
        Ele assentiu e voltaram para a cama.
        Quando viu ele ressonar com o semblante sereno, se pôs a pensar nos efeitos da mordida que lhe dera. Além da dor e da febre, que outras consequências estariam por vir?
        Ela sabia que a noite não era uma boa conselheira, então fechou os olhos e adormeceu também.

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