Capítulo 30

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       Acordou e viu Miloch ao seu lado na cama, desmaiado, cheirando a álcool e de sapatos. Mas desta vez não havia nenhuma névoa envolvendo-o. Sorriu aliviada.
       Lembrou do terraço, do homem que a possuíra com sofreguidão e suspirou apaixonada. Tomou uma ducha, lavando com pesar os resquícios do homem amado de dentro dela.
        Em frente ao espelho admirou o corpo nu que viu refletido. Era ela aquela bela mulher, concluiu feliz. Mas em seguida questões mais extrínsecas subjugaram qualquer satisfação pessoal. E se perguntou mais uma vez que força estranha era aquela que a transformava daquela forma e como essa renovação era possível sem ser precedida pela morte.
       Mas o que de fato a angustiava era saber qual Poder era a fonte daquele milagre que era ela. Quase todos confiavam que os milagres eram exclusividade de Deus, mas ela sabia que não eram, porque também sabia que a diferença entre o Poder do Mal e do Bem era só de 1%. Sabia de muitas coisas, mas não de tudo. E de tudo que não sabia o que mais lhe interessava era saber se era fruto desse 1%. Bastava essa certeza para ser a pessoa mais feliz do mundo! Porque não queria ser instrumento do Mal; haviam mais pessoas lutando contra o Bem acreditando praticar o Bem do que se poderia supor. E essa correta dimensão do certo e do errado era tão tênue que nem ela conseguia apreender com a exatidão que gostaria. E isso lhe tirava a paz, porque cada um responderia por seus erros de per si, ainda que imbuídos de boas intenções.
         Havia um lugar assustador na outra dimensão que detectava tudo que se passava no íntimo de cada ser humano. Não tinha como escapar dessa análise, porque um elo invisível estabelecia a ligação entre cada ser humano e este lugar onde tudo sobre ele era registrado com assombrosa exatidão. Esse registro automático anotava todos os atos, as vontades e os pensamentos num livro e a pena era aplicada de acordo com o grau de perversidade de cada um. A certidão de nascimento era o ponta pé inicial do jogo dos erros e acertos e o atestado de óbito o fim dessa escrituração impiedosa. Esse era o Ministério Público de Deus!
       Buscava a verdade para si mesma, nada além disso. Porque quando tivesse certeza de quem a usava, saberia de tudo mais, e talvez ainda tivesse tempo de se salvar. E salvar a si mesma já estava de bom tamanho para Deus, porque a salvação da humanidade cabia a Ele, e a ninguém mais. Mas a salvação de cada um só dependia de cada um. Suspirou concluindo que ninguém poderia escapar de si mesmo, porque estava tudo escrito no Livro da Vida, que era personalíssimo.
        Se afastou do espelho e das reflexões que a atormentavam. Se arrumou rápido e saiu. Não tinha para onde ir, mas era aconselhável deixá-lo acordar sozinho para ter tempo e tranquilidade de se refazer. Não queria lhe causar qualquer constrangimento.
        O badalar tristonho de sinos lhe trouxe a lembrança de Renzo e do quanto confiava nele. Talvez ele pudesse ajudá-la, e pensando melhor concluiu que somente ele poderia fazê-lo. Ligou para o amigo e manobrou o carro em direção da igreja onde era padre. Sentia-se bem só de pensar nele. A lembrança de seu semblante sereno lhe dava uma grande sensação de paz. E concluiu que tinha uma afinidade inexplicável com aquele padre.
       Dirigia e pensava que tinha muito para contar-lhe. E tinha, principalmente, muito para perguntar-lhe. E a primeira pergunta que lhe faria era sobre a mordida. E depois lhe falaria sobre as entrevistas com Adriano.
        Renzo a recebeu com um abraço, que ela não quis acabar. E ficou por muito tempo abraçada a ele, ouvindo seu coração bater. Era tão bom ouvir aquela batida forte, linear e previsível. Era a música de um coração generoso.
Então um deles fez algum movimento e o abraço teve fim. Ele a encarou cheio de bondade, antes de falar:
        - Quer assistir à missa? Ou se preferir pode esperar aqui.
        - Espero aqui.
        Assim que ele saiu, olhou a sua volta comparando aquela sala simples, desprovida de pompa e circunstância, com o gabinete luxuoso de Adriano. Havia tanta diferença entre uma e outra, como de um sacerdote para outro. O bispo era solene, o padre, informal. Adriano era cerimonioso, Renzo era simples. E ela apreciava as pessoas simples.
        A sensação que tinha era a de que conhecia Renzo desde sempre, só não sabia dizer a partir de quando. Porque o que sabia de si era parte de quinhentos mil anos de História. E foi mais ou menos nesse período que a humanidade ficou pronta. E sabia com certeza que nessa época as espigas de arroz produziam apenas 56 grãos, porque alimentavam poucos seres. Mas suas lembranças eram nebulosas e por isso não podiam ser confiadas a ninguém, nem mesmo a Renzo.
       Ela não sabia com clareza de nada, tinha algumas lembranças vivas de quem era, mas a maioria delas eram registros apagados. Tinha esperanças que os pergaminhos trouxessem luz para esse arquivo morto, e lhe indicasse com segurança se havia lugar para ela no mundo. Era que se sentia uma forasteira. E ficava nesse limbo, entre o aqui e o acolá, entre o céu e a terra. E ia vivendo assim de forma precária. Mas a definição de tudo que a rodeava se tornava urgente, e dependia disso para existir. E depois se preocuparia em como sobreviveria a si mesma.
       Tinha outras perguntas para fazer ao amigo e protetor, aliás, o que mais tinha eram perguntas sem respostas. Uma dúvida que precisava esclarecer era se Renzo era seu libertador. Ou era Miloch? Por que alguém neste mundão de Deus haveria de livrá-la daquela dolorosa vida eterna.
       E subitamente se lembrou de Adriano e concluiu contrariada que se pareciam demais, porquê ambos eram contidos por questões transcendentais.

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