Miloch foi acordado na manhã seguinte por ela, que lhe trazia uma bandeja com o café da manhã. Como era agradável acordar em sua companhia! Tomou um gole do café preto com uma fatia de bolo, saboreando ambos. Ela se sentou ao seu lado na cama lendo as notícias. De repente, se virou para ele com uma expressão indecifrável.
- O que foi? – e engasgou com o café quando ela citou a turnê de certa pianista.
Demorou a se recompor, para em seguida quase sair correndo quando ela sugeriu que fossem ao seu concerto.
- Vamos, Miloch, por favor! Quero muito ir! – insistia, animada.
- Mas por que você insiste tanto em assistir esse concerto?
- Quero muito ver Bethoveen tocando novamente!
- Ver quem tocando? - perguntou, duvidando dos próprios ouvidos.
- Bethoveen. - repetiu ela com toda a naturalidade do mundo.
Uma nova lembrança se juntou àquelas que Miloch já tentava apagar de sua mente, a da madrugada passada ao lado de Susan. Corroído pelo ciúmes se entregara ao fascínio do ineditismo e à falsa expectativa que a bebida criava um novo começo. E para afastar alguma realidade que porventura insistisse em permanecer, bebia sem parar. Queria se embriagar porque queria esquecer quem era. Porque queria construir um novo enredo para sua trajetória. Porque queria... tantas coisas! Mas sabia, sempre soubera, que bastava esquecer Salamandra para recomeçar. E para isso bebia, mas nenhuma bebida era o bastante para apagá-la de sua memória. E quanto mais bebia mais lembrava dela, e a lembrança dela o levava a beber mais e mais. E o álcool subia à sua cabeça e recrudescia a ideia de que merecia perder o juízo. E por isso não ia embora e bebia sem parar.
E sem querer querendo foi se deixando envolver e foi se rendendo às armadilhas que suas sensações iam construindo. E de armadilha em armadilha foi sendo capturado e abatido. E foi a vítima de si mesmo. E só agora sabia disso.
Quando ela o tocou suavemente no ombro, voltou ao momento presente. Então disse-lhe que não era Beethoven que veriam tocar, mas uma pianista que, apesar de renomada, não era nem de longe o célebre compositor. E tornou a ouvir que não era ela que tocava aquelas teclas, mas ele!
- Como você pode afirmar isso com tanta certeza?
E ela contou que em Londres fora a uma apresentação dela e que viu Beethoven, e não ela, sentado ao piano. E tornou a afirmar que não era ela que tocava aquelas teclas.
- Miloch, essa pianista é a prova cabal de que os grandes artistas podem encostar em pessoas comuns para continuarem executando suas obras primas. – e refletindo por um segundo, completou: - Ou até se já renasceram.
Ele a observava, pensando se ela já sabia o que acontecera, e o instigava a lhe confessar a verdade, ou se ainda não sabia daquele detalhe infame em suas trajetórias. Olhou para a mulher a sua frente, tão confiante nele, e sentiu um peso comprimir seu coração. E soube que cedo ou tarde ela conheceria a verdade, dita por ele ou não. Então a angústia o cobriu com seu manto opressor, e sentiu-se mal; era preferível a vergonha de revelar a verdade ao vexame de ser pego na mentira? Ah, como lhe doía a ideia de magoá-la e de perder sua confiança! E se perguntava sem parar o porquê de ter feito o que fez!
Lembrou-se daquela noite e lastimou ter se deixado dominar pelas circunstâncias. Não planejara nada daquilo. Na saída do camarote alguém tocou seu ombro avisando-o de que ela o convidava para seu camarim. Foi guiado ao fundo do teatro, onde muitos convidados importantes atravancavam a passagem. Mas ele foi recebido pela dona da festa que lhe entregou uma taça de champanhe, pedindo:
- Brinde comigo!
E depois daquela taça muitas outras se seguiram. E ela o apresentava aos outros convidados como seu salvador. E todos riam e brindavam sem parar, e a atmosfera era tão agradável, tão divertida! Então, ela convidou a todos para estenderem a comemoração em um local onde pudessem ouvir uma boa música e dançar. Foi quando decidiu ir embora, mas ela retrucou:
- Como vou comemorar o sucesso desta noite sem meu convidado especial? E sem sua proteção, como sairei ilesa desta turnê? Você é meu salvador!
Lembrou que sorrira e dissera que precisava mesmo ir embora, mas ela se negara a aceitar suas desculpas. E ele se vira sendo levado noite afora, de copo em copo.
Nunca bebia. Não era de excessos, nunca fora. Não queria ter feito o que fizera, aliás, aquela madrugada lhe parecia agora infernal. Porque foram horas de uma estranha fuga, de uma negação do antes e de quem era. E essa negação absurda, sem pé nem cabeça, ressurgia do nada, renascendo de suas próprias cinzas. E quanto mais tentava enterrar seus restos mortais, mais se sentia revivido, como se fosse um ser sobrenatural.
Até que tentou recuperar o domínio de si, de parte da força que ainda sentia ser, para erguer o homem ainda que subjugado pela dúvida e devastado pelo desamor, mas já era tarde demais. O homem que era estava possuído por um ciúmes cego e dominado pelo desejo de vingança. E quando a consciência de sua iminente tragédia queria se abater sobre ele, para salvar o que ele ainda sabia ter de bom, Susan lhe estendia a taça cheia e o embebedava cada vez mais, derrotando-o. E se rendia novamente àquela esperança de renascimento, que já sabia ser impossível. Sem a mulher que amava não havia vida possível, não para ele.
Mas como contar para Salamandra a verdade fazendo-a acreditar que não queria ter feito o que fizera? Ou que, ainda que tivesse tido alguma vontade de fazê-lo, tinha sido ela a culpada? Nenhuma mulher aceitaria tal explicação, nem ela!
- Vou comprar os ingressos – prometeu para tranquilizá-la.
Mas Miloch, horas dando uma desculpa, horas outra, fingia que iria com ela ao concerto. Não conseguia entender a falta de entusiasmo dele pelo evento. Tinham uma vida cultural intensa. Iam a todos os concertos, vernissages, noites de autógrafos, premières, estreias, shows. E agora parecia indiferente ao seu convite tão especial, por que não era todo dia que se podia ver Beethoven ao piano!
Miloch só pensava na noite que passara junto da pianista. E que não lhe agradava a ideia de ter dormido com Bethoveen!
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.