Capítulo 17

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Miloch girou a chave com cuidado para evitar o ruído metálico do lingote e depois virou a maçaneta vagarosamente. E entrou como um ladrão, pé ante pé, se esgueirando pelas sombras. Dias antes fora ela que entrara em casa furtivamente, agora era a sua vez; um dia da caça o outro, do caçador, concluiu.
Entrou em casa sem querer pensar naquela noite. Já acordara com a decisão de não mais pensar, e queria fechar aquele dia assim, sem pensar. Estava transpirando álcool e sexo e por isso se jogou debaixo da ducha fria. Depois se deitou aliviado por ela estar dormindo. Que explicação lhe daria por chegar àquela hora, completamente bêbado? Não ia adiantar de nada inventar uma desculpa por mais plausível que fosse, pois ela, de alguma forma misteriosa sempre intuía a verdade. Não tinha como enganá-la, ela sabia quando ele estava mentindo!
Não tinha como Miloch saber, mas ela estava mergulhada num sonho estranho. Havia um punhal, uma grande cobra de duas cabeças e um dragão. A cobra tentava mordê-la e ela gritava por Miloch pedindo socorro. Via Miloch se aproximar com um punhal, e já começava a sentir-se salva, quando ele começou a esfaqueá-la incontáveis vezes nas costas. Então o dragão surgiu e decepou a cabeça de Miloch, que rolou no espaço, com os olhos arregalados. E após salvá-la, se deitou sobre ela e a cobriu inteiramente com suas imensas asas abertas e a escuridão foi completa.
Acordou chorando convulsivamente, acreditando que o sonho era real.
Miloch a chamava com suavidade, trazendo-a para a realidade; não havia punhal, nem cobra e nem dragão, e ele jamais lhe faria mal! Mas a sensação de pavor não a abandonava. Aquele sonho era um aviso, ela sabia, mas aviso do quê? O que estaria para acontecer? E quando aconteceria? Ou já teria acontecido? Mas, o que acontecera? Porque havia de muito que entendera que o tempo dos mortos era diferente do tempo dos vivos.
Ele a abraçou, protetor, querendo acalmá-la. Mas também estava assustado. Culpou-se pelo sonho ruim que ela tivera. Aquele pesadelo era o atestado de sua traição! E a abraçou mais forte ainda, num pedido mudo de perdão.
O abraço dele foi acalmando seu ser agitado, e parou de tremer e de chorar. Viu Miloch lhe estender um copo d'agua:
- Tudo bem, meu amor? – e sorria para ela com um carinho quase tangível.
E naquele exato instante, talvez sensibilizada pelo estranho sonho, percebeu que fazia anos que ele não a chamava de Salamandra! E fez a pergunta que não queria calar:
- Por que nunca mais me chamou pelo meu nome?
- Porque Salamandra não é o seu nome! – respondeu, convicto.
- Não é? E qual é o meu nome?
Olhou para ela, mas teve que desviar os olhos daquele olhar puro, que pedia uma explicação que ele não sabia qual era. Fechou os olhos buscando a resposta, mas ela lhe pareceu tão desfigurada que a negou. E soube que nem ele sabia ainda a resposta para aquela pergunta. E deu de ombros ao dizer:
- Não sei...
Ela aceitou a resposta porquê não  queria criar qualquer clima ruim entre eles, o amava e queria acreditar que ele também a amava. Se virou na cama tentando esquecer-se do sonho mau, da sensação fatalista que ele lhe causara.
Por seu lado, Miloch só queria sacramentar o amor que os unia, confirmar que foram feitos um para o outro e que continuariam assim, apesar dos imprevistos e das eventualidades. Precisava reduzir a pó, a um nada, o pequeno desvio de conduta daquela noite.

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