Capitulo 110

6 1 0
                                    

         Beberam todas as garrafas de todos os vinhos que Renzo tinha guardados, e saíram para a rua para beberem mais, porquê aquela era a ultima noite deles. Sem qualquer trato, porque o subentendido é algo que está na mente, que se entende, apesar de não estar expresso ou enunciado, e eles sabiam que depois daquela noite não haveriam outras.
       Ele lhe ofereceu gentilmente o braço que ela aceitou com prazer, e saíram andando devagar, admirando a paisagem, sentindo o perfume de flores misturado ao cheiro peculiar do mar, desfrutando do valor que a companhia do outro trazia. Era um momento tão único, tão raro aquele que sabiam que nunca mais se repetiria.
        Renzo disse, gentilmente:
        - Você sabe que nunca daria meu braço para outra pessoa...
         Ela assentiu com a cabeça, e continuaram andando, em silêncio, de braços dados. De vez em quando ele se virava para olha-la, talvez na esperança de ver de novo o dragão, mas o que via era uma jovem e bela mulher, de semblante sereno.
As espiadelas dele não lhe passaram desapercebidas e acabou por sucumbir à curiosidade:
- Por que me espia?
Renzo sorriu, mais da sua falta de discrição do que da curiosidade dela; só passava ileso por ela aquilo que ela julgava dispensável.
- Refletia sobre o enigmático universo dos guardiões, ou anjos da guarda, como preferir. Você afirma que são os nossos ancestrais de melhor estirpe, e acredito nisso, pois me parece um trabalho digno zelar por outro espirito e, digamos de passagem, muitos devem ser difíceis de serem tutelados. Mas me ocorreu uma estranha idéia, a de que animais poderiam ser nossos guardiões também. Já imaginou alguém ter um dragão como guardião? Quão fabuloso seria?
- O senhor gostaria de ter um dragão como seu protetor, padre Renzo? - perguntou, sorrindo.
- Sim! Claro!
- Por quê?
- Porque me sentiria amplamente protegido e não teria medo de realizar certas proezas. Tantas coisas não fazemos por medo de morrer... e morremos do mesmo jeito. - Virou-se para ela, e fez a pergunta que o cutucava:
- E você, gostaria de ter um dragão como guardião?
Do que ela sabia, porquê lhe contaram, só algumas almas tinham além de espíritos celestiais, dragões como guardiões. Esses espíritos possuíam uma missão grandiosa e por isso recebiam uma proteção excepcional.
- Acho que não... - respondeu. E quando ele quis saber o porquê, explicou seus motivos.
            - Então você acredita que um protegido de dragão seria um ser especial, como um semideus, uma divindade? - viu ela menear a cabeça afirmativamente.
            Ele achou por bem ocultar-lhe sua visão e desconfianças e seguiram caminhando de braços dados, sem se aprofundarem em terrenos pantanosos, para não criarem desordem naquela derradeira divisão proporcional de lucros e prejuízos. Eram cocredores e codevedores e aquela prestação de contas devia seguir harmoniosa para que se encerrasse em paz e para sempre.
            Nunca lhe contara o que sabia do teor dos manuscritos, honrando uma promessa feita à Adriano, e não era muita coisa, não, porquê a grande parte dele era indecifrável. Mas aquilo que o especialista contratado em segredo pelo bispo conseguira desvendar fazia todo o sentido se comparado à sua história de vida.
            Aquele andarilho que desaparecera num piscar de olhos perante centenas de pessoas causara um alvoroço e para acalmar os ânimos, Adriano sumira com ela e com os segredos contidos nos frágeis papéis. Mas, contrariando as expectativas dele, e para seu desespero, nenhuma das providencias haviam resultado eficazes; o mistério não fora esclarecido e ela não morrera. 
             E agora ele, cuja vida se despedia célere, sentia que não poderia morrer como Adriano, carregando consigo a salvação dela. Apenas aguardava uma derradeira confirmação de que fazia a coisa certa no tempo certo.
            O silêncio aos poucos foi tomado pelo ruidoso movimento de bares e restaurantes que ladeavam a rua. Músicas se misturavam a vozes e risadas, ao tilintar de taças e talheres, e ao arrastar de mesas e cadeiras. Era a efervecência humana no seu apogeu, comemorando o simples fato de se estar vivo, sem maiores problematizações. E ele que fora acostumado a considerar os elementos existenciais como desafios, percebia agora prazer no senso comum.
Foi quando parou em frente a um bar e o rosto corado de Adriano veio-lhe à memória de forma tão pungente que fechou os olhos para tentar conter algumas lágrimas. Sentiu o aperto discreto no seu braço e disse:
- Tempos atrás eu e Adriano estivemos aqui. Foi a primeira e ultima vez que saímos para beber como bons amigos.
- Gostaria de entrar e tomar um drinque em homenagem à ele?
- Sim, gostaria. Você não se importaria?
Salamandra deixou o padre, muito alto e encurvado seguir sua memória para sentar onde estiveram sentados naquela noite, pedir o drinque que beberam, falar o que conversaram, para que revivesse aquele momento em toda semelhança possível. Ela só queria faze-lo feliz, para agradecer-lhe e, então, dizer-lhe adeus.
Os drinques se multiplicaram, e Renzo agora podia novamente enxergar com clareza o dragão resplandecente que quase abraçava Salamandra. A visão era tão bela que não conseguia desviar os olhos. E como uma criança encantada por uma novidade, tentou tocar a figura dourada, mas acabou por tocar o ombro dela e só não desabou no chão porque ela o segurou. Mas ele continuava ali, continuava a vê-lo, e agora sabia que ele sempre estivera ali a protege-la.
Nunca antes tivera uma visão tão extraordinária de uma criatura tão magnifica como aquela, interagindo magicamente com o mundo real. Tinha coisas para revelar do passado dela e agora tinha certeza delas, e estava decidido a contar-lhe tudo.
- Assim que Adriano se apossou dos pergaminhos, porquê você não tinha qualquer condição de protege-los, providenciou em segredo alguém que pudesse decifra-los. - Renzo falava atento às reações do ser mitológico, a qualquer mudança de humor dele se calaria para sempre. Mas como ele continuava a resfolegar devagar, viu que podia continuar:
         - A Porta da Rocha do Céu não é uma lenda japonesa, ela existe e a única revelação que se obteve decifrando os pergaminhos foi sua exata localização. - Renzo tirou um papel dobrado do bolso e com a mão tremula o entregou para Salamandra.
         - Aqui está o mapa. Alguém precisa descerra-la para libertar a deusa que lá habita porquê é ela quem tem a chave do Amargedon. Assim, o longo período noturno que adormeceu os Homens se tornará Dia e a profecia do Juízo Final se concretizará. E não me pergunte mais nada, porquê nada mais foi decifrado.
          Salamandra jamais supôs que ele escondia-lhe aquela revelação por tantos anos, e quando ele perguntou se poderia perdoa-lo, duvidou de que pudesse faze-lo.
            - Não tem problema, se não fui fritado é porquê fui perdoado. - disse, sorrindo para o radiante dragão.

SalamandraOnde histórias criam vida. Descubra agora