Renzo sabia que aquele era um ritual secreto, cercado de contingências especiais, um procedimento feito apenas por pessoas preparadas, os denominados exorcistas.
Era um cenário aterrador, onde a ordem natural das coisas podia mudar num piscar de olhos, onde o ser afligido podia apresentar agressividade, fúria, ódio, e uma violenta aversão à Deus, além de se expressar em línguas estranhas e fazer revelações sobre coisas que seriam impossíveis saber. E dependendo do grau de malignidade objetos começavam a voar, colocando em risco a vida do padre incumbido de expulsar o demônio.
Essa função dependia de uma força espiritual pessoal e muito particular do sacerdote, ele não escolhia exorcizar demônios, era escolhido por eles; o embate era a sua diversão preferida. O diabo não era só cruel, era zombeteiro e sofisticado.
E esse processo de libertação era dramático e violento, e às vezes fatal para o possuído ou para o libertador, e ele temia tal desfecho. É que depois de longas conversas com Salamandra sua versão sobre o Bem e o Mal havia ressurgido abrandada, muito mais crível do que a de sua Igreja que não confiava nos fenômenos de possessão de espíritos doutrinadores e iluminados, que traziam ao mundo apenas benefícios. Mas agora sabia que boas ou más, essas expressões espirituais influenciavam todas as pessoas o tempo todo, ainda que imperceptivelmente e ainda que não se acreditasse nelas.
Lembrou-se da conversa que tivera com ela numa manhã em que fora visitá-la na sua nova cela já na prisão secular. Ela pareceu-lhe menos encarquilhada, e seus olhos perdera aquele brilho mortiço que denuncia o apagar da vida. Entretanto, após alguns minutos ao seu lado percebeu que ela continuava o ser inexpugnável de sempre.
Fazia muito frio àquela hora do dia, mas ela aparentava estar confortável ainda que vestida com um camisolão de algodão e de estar descalça.
- Não sente frio? - Perguntou Renzo, preocupado com seu bem estar.
- O fogo que arde dentro de mim não deixa que eu sinta frio.
- Com quem você tem conversado o tempo todo?
- Com os Yukons dos ancestrais.
- E quem são eles?
- Gente muito velha, que vem renascendo há milhares de anos.
- Seriam seus ancestrais?
- Não sei, isso eles não me dizem. Mas desconfio que não são meus parentes.
- E o que eles te contam?
- Que somos meras representações físicas das nossas realidades espirituais.
- E o que eles querem dizer com isso?
Baixando o tom da voz, sussurrou:
- O Yukon de cada pessoa está numa das 180 camadas do Além.
- E o que é o Yukon? - Perguntou, aproximando-se vagarosamente.
- É o que somos no Além.
- Entendi... E esses Yukons te contaram que a outra dimensão tem 180 camadas?
- Presta atenção: são 180 camadas divididas em três para cada estágio da evolução.
- Quais seriam esses estágios?
- Céu, Purgatório e Inferno. - Olhou para ele, impaciente com sua ignorância e exclamou:
- Você já devia saber disso!
- Você tem razão, eu sei. Mas, então, se entendi bem o Céu tem 60 camadas, divididas em 3 camadas de 20?
- Hum... você sabe que o Céu possuí o céu inferior, o céu intermediário e o céu superior. O Plano Intermediário e o Inferno também. Deus é muito inteligente! Percebe como Ele é inteligente?
Não, ele não estava analisando Deus, jamais poderia fazê-lo; estava analisando àquele ser e começava a perceber que jamais decifraria aquele mistério.
Então, ela se pôs a explicar a estreita relação entre a posição dos Yukons nesses planos e o destino do homem. E que uma prova disso era que, às vezes, as coisas não corriam como o homem desejava, e o seu destino tomava um rumo que ele jamais imaginara.
Declarou que Deus emitia ordens ao homem constantemente, através dessa semente de cada indivíduo numa dessas camadas. E que a ordem era primeiramente baixada ao YUKON e este, através do elo espiritual, a transmitia à sua alma, núcleo dele encarnado. Mas que frequentemente os mortos interceptavam essas mensagens e tentavam transmiti-las diretamente aos seus descendentes no intuito de ajudá-los.
- Temos que ouvir os mortos, eles sempre têm coisas importantes para nos dizer.
- Mas como diferenciar nossos mortos de outros?
- Ao morrer observe quem vem em teu auxílio que saberá com certeza absoluta tua anterioridade e tua posterioridade.
- Mas e durante a vida, como reconhecer os espíritos errantes, que não nos querem bem daqueles que querem?
- Não precisa fazer isso; todos que se aproximarem de você serão vossos mortos. E o que parece ser maldade é apenas a manifestação do sofrimento deles.
- Você conversa com seus mortos também? - Tornou a perguntar.
- Não sei, mas acho que não.
- Mas quem a gerou senão um homem e uma mulher?
Ela ficou em silêncio por longos minutos, vasculhando as lembranças em busca daquela resposta, mas desistiu; era justamente essa a incógnita sobre si que tentava decifrar.
- Eu não sei.
Naquela manhã despediu-se dela sentindo-se cansado ou, talvez, vulnerável; muitos de seus valores estavam em xeque.
E quando Adriano o avisou da missão que enfrentariam sentiu que o seu fim era imprevisível porquê o processo podia ser demorado, chegando a durar uma semana, meses ou anos. Já não tinha a energia necessária para se dedicar longamente aos negócios da Igreja, e não acreditava que sobreviveria a tamanha empreitada. Mas o pior era pensar que poderia estar lutando contra a pessoa que pretendia defender.
- Tenho planos mirabolantes para esse trabalho que quero compartilhar com você, Renzo. Nós sairemos renovados deste exorcismo!
Renzo não gostou de saber que Adriano arquitetava algo mirabolante, porquê os efeitos dessas experiências acabavam recaindo sobre ele. E ja pressentindo o desastre e por isso com medo da resposta, perguntou quais planos eram esses. E sentiu um raio sacudir seu corpo quando ouviu Adriano revelar, em surdina:
- Ela vai atuar conosco para expulsar esse demônio.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.