Capítulo 84

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       Aquele era um momento raro para Salamandra, vê-los juntos e poder compara-los de tão perto. No decorrer de sua existência eles se alternaram nas visitas que lhe faziam, quando entrava um, o outro saía.
       Padre Renzo, quieto, introvertido e meio solitario, era o oposto de Adriano, agitado e loquaz. Eram diferentes inclusive na aparência, Renzo era muito alto e magro, enquanto Adriano era de estatura mediana e mais corpulento.
       Mas eram nas entrevistas que tinha com eles que essas diferenças se faziam mais gritantes, e por isso se perguntava se Renzo estaria ali como seu aliado ou como o advogado do diabo.
       Desviou os olhos dos dois homens que se cumprimentavam e os fixou nas flores que jaziam num vaso sobre a mesa do anfitrião, concluindo que as práticas simples acabavam por sucumbir àquelas pomposas, como se uma fosse mais importante que a outra. No entanto, manter flores vivas num gabinete de trabalho livraria seu ocupante de muitas influências negativas, sem que com isso ele despendesse tempo e esforços físicos. Porém, ao contrário destas, as flores mortas não eram alvissareiras.
        Esforçou o pensamento e lembranças puras, destituídas de intenções, ocuparam sua mente, causando-lhe uma tristeza infinita, e concluiu que estaria sozinha no mundo se não fosse Miloch. Então, negou essa evidência na tentativa de ser mais uma dentre bilhões, mas não havia escapatória para si mesma; ela não era um ser humano comum.
        Emergiu de seus devaneios e tornou a olhar para aqueles homens que sempre estiveram ao seu lado, e eles pareciam aguardar sua atenção, porquê quebraram o silêncio, perguntando:
        - Você está entendendo?
        Não, ela não havia entendido nada, porquê não estivera ali por algum tempo e não sabia precisar quanto, talvez por minutos ou por alguns segundos. Era que a medida de tempo para ela era tão diversa do tempo deles! Podia alhear-se do presente e resvalar para o passado longínquo, ou enxergar realidades que pareciam não existirem de fato, assim como mergulhar em visões de um tempo ainda inexistente, e voltar para o momento do então, do aqui e do agora como num passe de mágica.
       Essas viagens astrais eram um fenômeno habitual em sua vida, comumente sua alma se emancipava e tinha experiências fantásticas fora do corpo. Nesses momentos vivenciava um desprendimento espiritual, uma sensação de sair do próprio corpo, como se ela se desprendesse dela mesma para adentrar em outros planos de consciência.
         Adriano fitou Renzo e acenou com a cabeça, e o padre reposicionou sua cadeira para encarar de frente a inocente.
         - Você quer nos revelar alguma coisa? - perguntou, respeitoso.
         - O que querem de mim além de revelações?
         Adriano se adiantou, dizendo:
         - Saber se você tem o poder de exorcizar o demônio.
         Renzo meneou discretamente a cabeça, reprovando o afoito bispo. Estava cansado de corrigir a inobservância dele quanto aos limites e modos no trato com Salamandra.
        - Querem que eu exorcize um demônio? Mas são vocês os detentores deste mandato!
         Para arrefecer os ânimos, Renzo disse:
         - Jamais lhe pediríamos isso! Não estamos pedindo que faça nosso trabalho, não é isso. Mas confiamos na sua capacidade de analisar os fenômenos espirituais e pensamos que, talvez, você pudesse nos dar um conselho que libertasse o possuído.
         - Mas por que se empenham tanto em lutar contra o que não podem destruir? Já lhes disse que a função do Mal consiste em salientar mais nitidamente o Bem.
        Adriano, de pé na janela, olhou para o jardim para disfarçar sua contrariedade, enquanto Renzo aproximou-se um pouco mais dela, antes de continuar:
        - A família, mulher e cinco filhos também estão sob o jugo do maligno, porquê seu provedor está definhando; sente fome, mas não consegue engolir sequer água.
        - Eu já lhes falei sobre os demônios e como atuam, eles agem sobre os detentores de algum poder. Também já lhes expliquei que encosto é atuação de algum antepassado da própria pessoa. Que outra explicação querem de mim?
        Adriano impacientou-se com a diplomacia inútil de Renzo e disparou que precisava da 5ª Visão dela para alcançar a própria libertação. E foi a vez de Renzo e Salamandra se voltaram para o homem ansioso sem entender o que ele acabara de lhes falar.
        Adriano era um grande orador quando no púlpito, mas era inábil com as palavras quando as usava em causa própria. Tinha uma comunicação pesada e obstruída por muita solenidade aprendida com o cargo, o que dificultava seus relacionamentos pessoais, fora do contexto religioso. E nem a observação direta dos homens que o confessionário lhe permitira foi um método eficiente para que entendesse a si mesmo. Então, embaralhava as idéias ao misturar o homem e o sacerdote e deduzia, ou induzia e, quase sempre, concluía ininteligivelmente.
         - Não vou participar disso. - Disse, Salamandra, levantando-se e saindo do gabinete episcopal.
        Adriano fez um gesto para Renzo sair também e ir atrás dela, então se dirigiu para a janela por onde uma música triste chegava. Seu tempo estava se esgotando, podia sentir a cadência do fluxo de sangue diminuir a cada manhã; já não despertava para a vida, mas para o fim dela.
        Renzo alcançou Salamandra e caminhou ao seu lado, calado e de cabeça baixa. Estava cansado de ser o fiel da balança dos interesses divergentes que separavam a humanidade. Mas Adriano lhe fizera severas advertências quanto ao destino de sua protegida caso ela se negasse a participar da cerimônia de expulsão, por isso tomou coragem para pedir-lhe que pensasse bem, que nada lhe custaria visitar o possuído.
       Salamandra parou a meio caminho da saída e se desculpando com Renzo, deu meia volta e entrou, sem bater, na sala de Adriano.
       - Ora, ora, voltou atrás...
       - ... só para avisa-lo para retirar imediatamente essas flores mortas daqui.

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