Capitulo 108

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       Salamandra recebeu aquela revelação em jubilo; como a vida podia ser extraordinária! Agora Ruy seria filho de quem fora irmão e irmão do próprio filho, e juntos cresceriam para a posterioridade dos deuses que um dia habitaram o sopé do monte Fuji, berço da Humanidade.
Era a história dos Homens repetindo-se na eterna roda de Sakyamuni, no eterno nascer e morrer na busca da excelência da alma e de seu lugar no Paraíso. Era essa a maior poesia de toda a existência por todos os séculos. E que outro interesse teria Deus ao criar Seu semelhante além daquele de ver outro feliz como Ele? O anseio do homem e o de seu Criador sempre foram os mesmos.
       Para os crentes, nada acontecia por acaso, porque o acaso era um acontecimento escrito por Deus; ou se acreditava Nele como o Senhor Absoluto, ou não se acreditava em nada. Para aqueles que desacreditavam pura e simplesmente, tudo era fruto do acaso, da ignorância; o homem era senhor do seu destino.
      A bem da verdade, a narrativa construída pelos próprios homens para o surgimento da Humanidade era o resultado das duas teorias, a do criacionismo e a do evolucionismo; Deus criou o primeiro Homem, depois este criou os outros homens numa ordem crescente de uma evolução natural. Este fora um dos primeiros ensinamentos que recebera daqueles espíritos que vagavam pelo convento esquecido, a de que ambas as teorias eram a grande revelação do segredo Divino, a de que todos, crentes e descrentes estavam sob o jugo de uma força misteriosa, invencível, incompreensível; essa era a Verdade de todos os tempos.
       E depois desta revelação, outras vieram. Eles pareciam tão animados com sua presença, que não a abandonavam nunca, fizeram até um escalonamento de horários para visita-la, tudo muito ordeiro e respeitoso. E a construção sombria e silenciosa recebeu uma lufada de luz, movimento e alegria. Sussurros e gargalhadas invadiram os recantos já esquecidos, e cadeados foram rompidos, o pó sobre os livros, soprado, e celas seculares foram abertas, libertando todas as almas aprisionadas. E o grande baile começou, eles eram os anfitriões, ela, a convidada especial, porquê podia vê-los e entende-los, enquanto as demais criaturas que ali viviam apenas acreditavam que acreditavam neles.
       E quando Renzo veio resgata-la, muito tempo depois, todos eles se curvaram à sua passagem num ato de respeito e agradecimento.
Ela sonhara com aquele momento, de sair daquele lugar sombrio, de se saber viva e não morta, porque já não tinha certeza se o que vivia fazia parte deste mundo ou não. Até mesmo o desterro naquela colina onde vivera amarrada, era melhor do que aquela cela fria e escura onde o sol se apagara para sempre. Mas quando viu aquelas almas novamente sem brilho, novamente aprisionadas por sua partida, entendeu que toda alegria solitária era triste.
        Não podia partir sozinha. Então parou a meio caminho do fim e pediu a Renzo que fizesse uma oração.
      - Uma oração? Aqui? - perguntou Renzo.
      Sem mais delongas, Salamandra juntou as mãos e virando-se em direção ao sol, orou, acompanhada pela padre:
       - Ó Deus, Criador e Doador de Toda Vida, Seu é o Reino, a Glória e o Poder por todos os Séculos.
Em seguida abriu as seculares portas de madeira e saiu andando, seguida de perto por milhares de espíritos. Agradeceu a cada uma daquelas almas que esperaram por ela por tanto tempo, antes de ve-los desaparecerem em várias direções. E só então partiu serena.
      Muitas das coisas parecia ter nascido sabendo, mas outras tantas aprendera vivendo e uma delas era que se devia dar tempo para o acaso e espaço para os mistérios. Por isso que,
apesar do "grande finale" estar sendo postergado por Murilo, sentia-se dominada por uma grande sensação de felicidade pela notícia da gravidez de Susan.
       - Não se preocupe, Murilo, para mim, meses não são mais que alguns dias... - sua escala de tempo não tinha parâmetros na das pessoas comuns.
- Sua sobrinha precisará muito de você, muito mais que eu.
       Mergulhou nos olhos dela que pareciam traga-lo para a infinitude, para a perdição de qualquer senso e sentiu seu desejo poderoso ergue-la do chão. Esperou que ela se debatesse, mas ao contrário, ela se aquietou em seu peito, deixando a ele toda a tarefa.
Beijou-lhe a boca, ah, como beijava bem aquela mulher! Era um beijo quente, macio, sem pressa, que lembrava o doce sabor de frutas maduras. E abriu os olhos para ver novamente o verde esmeralda de seus olhos escurecerem; quando o brilho deles se apagavam era o sinal de que sua dona estava refém, e que havia chegado a hora da tomada de posse. Eram lembranças que nunca foram e que nunca seriam esquecidas.
Sentiu o perfume discreto dele, tão particular, que nunca mais sentiu em homem algum, e fechou os olhos; aquele perfume era uma droga como outra qualquer, que furtava a realidade em troca da fantasia, e como evitar seu efeito depois de experimenta-lo?
-Faz aquilo... - pediu ele.
- O quê?
- Aquilo que só você sabe fazer...
Desvencilhou-se de seus braços e o encarou, melancólica:
- Esqueci de como é...

SalamandraOnde histórias criam vida. Descubra agora