Sem mais pendências para serem ajustadas, Salamandra e Renzo se deram ao prazer da companhia um do outro como as demais pessoas, sem recalques. Pediram um shot de tequila, que sorveram juntos de uma só vez. Então o convidou para dançar e Renzo, a princípio hesitante, se deixou conduzir para o centro da balburdia. E foi se entregando ao ritmo da música e às lembranças de quando era criança e dava as mãos à mãe e giravam em ciranda. Como naquela época, a sensação de liberdade era inebriante e desinibidora.
Para aqueles convivas, Renzo era um homem ultrapassado, mas o diferente atraía e logo o envolveram oferecendo-lhe bebida, um cigarro ou simplesmente querendo aprender os seus estranhos passos de dança.
Seus quase dois metros de altura cobertos pelo traje em desuso, os olhos muito azuis cravados no rosto cumprido, magro, marcado por sulcos e rugas, cujo ralos cabelos brancos não cobriam a vasta testa contribuíam para seu aspecto acrônico.
De repente, alguém o reconheceu:
- Padre Renzo!
A notícia se espalhou e quando deu por si, estava sendo ovacionado. Os aplausos entusiasmados, os gritos de jubilo, as honras prestadas por aquelas pessoas eram um pequeno triunfo que colhia como uma graça pelos anos dedicados ao Pai de Todos. Não era ele que estava sendo aclamado publicamente, era Deus, que o tornara um ser merecedor daquela honraria. Mas sabia que a ambivalência era a Lei primordial, e antes que o ocaso sucedesse ao apogeu, bateu em retirada.
Mas todo fim merecia um champanhe, pensou e dali a pouco saíram para a rua, ele de braços dados com a garrafa de champanhe.
Então disse, movido por uma saudade nostálgica dele mesmo, de quando era um seminarista, e era ingênuo:
- Naquela noite, Adriano saiu carregando a garrafa de uísque debaixo do braço, e ele era um bispo. Por que eu, um simples padre não posso sair carregando uma garrafa de champanhe?
Salamandra sabia que ele estava tentando justificar a si mesmo na busca de palavras de consolo, mas ela não via razões para acalmar seus temores, e provocou-o:
- Por que se preocupa tanto em cometer um pecado se o perdão de Deus é inesgotável e toda vez que o pedimos Ele o concede?
- É inesgotável para novos pecados, mas não para a reincidência neles, senão não haveria Inferno.
Parou para tomar um gole e prosseguiu:
- Pelo que conheci do bispo creio que ele foi acolhido no Céu, mas gostaria muito de ter certeza disso, de vê-lo lá.
Renzo virou-se para ela, subitamente desconfiado:
- Você sabe onde ele está? - Viu ela menear a cabeça negativamente. - Não me conformo com isso, com essa falta de notícia.
Ajudou Renzo tirar os sapatos e se deitar. Deu-lhe um café forte e o cobriu. E antes de deixa-lo sozinho, se sentou para se certificar que ele ficaria bem. Olhou as garrafas de vinho vazias sobre a mesa e pensou que devia dar um fim nelas para preservar a reputação do padre.
Depois de apagar os vestígios da inocente farra, abriu o papel que Renzo lhe entregara e sentiu um arrepio percorrer-lhe a coluna; ali estava o mapa da mina! Aquela notícia era o gatilho para o seu renascimento, um motivo razoável para sobreviver a tudo e a todos.
Ouviu Renzo ressonar tranquilamente, beijou-lhe a fronte num derradeiro adeus e saiu para a rua silenciosa.
Lendas japonesas criaram crenças e a partir destas outras lendas mais complexas e abrangentes foram criadas. Mas sempre tivera certeza que a Rocha da Porta do Céu existia, só não sabia onde. Sua intuição nunca falhara!
Tocou a campainha e esperou Murilo abrir a porta para estender-lhe o mapa.
Murilo desviou os olhos do papel, não era crível que aquele desenho de linhas retorcidas fosse o caminho das pedras, que os levariam a um templo perdido nas brumas da passagem das Eras.
- Agora minha vida está em suas mãos, Murilo, como você sempre quis.
A respiração dele ficou pesada, como a de um cavalo resfolegante:
- Mas não como preciso, como sempre precisei ainda que sem saber.
E controlando-se, continuou:
- Mas apesar de saber que você prefere outro à mim, vou cumprir com minha palavra e conduzi-la à essa misteriosa Porta do Céu. Eu sou um homem sério, um homem que cumpre com sua palavra, só que não sabia disso quando a conheci.
O olhou com imensa ternura, talvez, com gratidão por seu despertar como mulher, por te-la feito sentir desejo e prazer após uma geleira sentimental.
Ela não sabia se era o sofrimento ou a idade mesmo, mas Murilo parecia-lhe tão diferente de quando o conhecera naquela expedição à Atlantida! Se o homem à sua frente existisse à época, sua vida teria tomado outro rumo, mas Murilo era inconstante, um homem insatisfeito consigo mesmo e atraído por ilusões. E quando percebeu que ele era movido por uma esperança vã, um sonho impossível de alcançar, sentiu o cristal rachar e deu adeus à ele.
Mas agora precisava dele para despertar daquele sono invernal em que sua alma estava mergulhada.
- Quando, Murilo, só me diga quando.
O ar rarefeito tornava-os suscetíveis a vertigens e à exaustão, e o caminho íngreme dificultava sobremaneira o acesso ao lugar. A todo momento precisavam parar para acalmar as batidas do coração, tomar fôlego, recompor as energias, para seguir na caminhada.
No platô da montanha uma imponente pedra surgiu à frente deles. Eram portais duplos, hermeticamente fechados. Quedaram-se ante a visão daquela rocha majestosa que brilhava sob a incidência ininterrupta do sol. Àquela altitude, o silencio era absoluto, o frio solar constante, mas noite e dia podiam se alternar muito rapidamente e foi o que aconteceu. Nuvens pesadas e vagarosas começaram a se avolumar em torno deles, prenunciando uma grande nevasca.
O guia sinalizou que deviam sair dali o quanto antes, e todos se viraram e começaram a descer, menos Salamandra para quem o aparente monolítico pareceu familiar. A construção daquele santuário num lugar de tão difícil acesso confirmava a sua importância e a autoridade de seu habitante, e no céu sobre ele enxergava uma ilha, sua terra natal, Atlantida.
Virou-se para trás, para avisar a Murilo que não desceria, mas ele e os demais haviam desaparecido no denso nevoeiro. Estava absolutamente sozinha.
Caminhou em direção da rocha e tocou com a palma das mãos a pedra cintilante e a viu se abrir silenciosamente. Sem receio algum, adentrou na escura fenda, que ao se fechar atrás de si fez surgir um halo de luz sobre o que lhe pareceram letras ricamente ilustradas. Aproximou-se e emocionada, intuiu que eram os originais dos pergaminhos entalhados em rochas milenares.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.