Capítulo 43

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        - A origem do pecado é termos aprisionado os representantes de Deus na Terra. Todos nós possuímos este pecado. Mas o mais grave é que continuamos a comete-lo até hoje.
        Adriano sentiu vibrar as ínfimas partes de seu ser e reconheceu que a cada dia estavam ocorrendo transformações profundas nele e ela era a responsável.
        - Os representantes de Deus na Terra são...?
        - Os deuses que nasceram por ordem divina.
        - Você defende o politeísmo, eu sei. Mas me ensinaram que o monoteísmo é a verdade, o fundamento da Criação. 
        - Precisamos superar a crença que Deus e o Diabo são os únicos atores do drama universal. Eu lhe garanto que existe a falange do Bem e a falange do Mal.
         - E nós trancamos esses deuses para deixar os maus dominarem o mundo? E essa sua tese? Talvez fosse sensato concluir que esses enviados de Deus foram fracos, talvez, covardes, e que outros foram loucos de lutar contra Deus.
         - Loucos, não, maus. E devemos usar o tempo presente; o Mal continua dominando porque continuamos a aprisionar o Bem.
         - O que você está a me dizer, Salamandra? – olhou suplicante para a bela mulher a sua frente. Cada revelação ou confirmação de revelações passadas eram como punhaladas em sua alma já tão atormentada.                   
          Necessitava reencontrar a confiança que o acompanhara vida afora, mas seus pilares estavam corroídos e prestes a desabar. Não tinha mais como voltar a ser o que era, não diante tudo que presenciara, de tudo que agora sabia por meio das novas teorias e de fatos concretos. Por isso a ouvia com os olhos bem abertos.
          Salamandra podia sentir as vibrações confusas que Adriano emanava, e sentiu compaixão. Por ela, terminariam ali aquelas entrevistas desafiadoras, mas perseguia os pergaminhos e por isso continuava respondendo as suas perguntas. E ele também devia estar perseguindo alguma coisa para continuar naquela tortura espiritual. Portanto, como ela, só pararia quando tivesse alcançado seu objetivo.
          - E quando o Bem reinará?
          - Quando a Transição da Era da Noite para a Era do Dia chegar ao fim. Esse é um fenômeno ocorrido no mundo espiritual há vários milhares de anos. O Mal foge da Luz! Como a luz do sol destrói os vampiros, a claridade afasta a escuridão.
         - E quando se completará essa transição?
         - Isso está simbolizado na abertura da Porta da Rocha do Céu. Quando essa porta for descerrada, se fará Dia em ambos os mundos. Acredito que a expressão "Luz do Oriente", usada no Ocidente desde a antiguidade, refere-se a mesma profecia.
         Ela sabia mais que isso, sabia que sua visita ao local também constituía uma grande profecia do advento desse mundo, mas era um segredo que devia guardar para si. Mas havia um detalhe importante que devia revelar para ele:
         - Quando a Porta da Rocha do Céu for descerrada, os mil braços de Deus se libertarão e então ocorrerá o Juízo Final.
         Adriano se apoiou na mesa com medo de cair, porque sentiu seus joelhos fraquejarem e quase se dobrarem. Impactado com o que acabara de ouvir, ficou inerte por alguns segundos. Aos poucos recuperou a calma para prosseguir naquela entrevista do absurdo.
         - Esse julgamento final será feito por Deus, unicamente por Ele. – afirmou, com duvidosa convicção, porque já não tinha certeza de mais nada.
         Salamandra retrucou:
         - A crença geral é que esse julgamento será efetuado por Deus, mas não será assim.
         - Juízo significa julgamento, e quem poderá nos julgar senão Ele? – perguntou, consumido pela curiosidade.
         - Vai haver uma grande ação purificadora que atingirá a todos. Existe, porém, um problema muito sério: chegando a hora, por mais que o homem se esforce, nada poderá contra a força purificadora da grande natureza. Então o Bem e o Mal serão claramente separados; o Mal será destruído e o Bem, sobreviverá.
        - Você fala de terremotos, maremotos, erupções, cometas...?
        - Disso e de doenças.
        - Assim sendo, onde entram os pecados de cada um nesse cenário de destruição?
        - Quanto mais pecados a pessoa tiver menos conseguirá suportar a grande purificação, não havendo outra alternativa a não ser deixar de existir para todo o sempre. Para os que possuem muitos pecados o Juízo Final é, realmente, temível.
        - Sinto-me aliviado com esta explicação. – e pareceu relaxar.
        - Por quê?
        - Porquê sempre fui muito religioso, e consegui desviar das tentações que se apresentavam, além de ter me dedicado a praticar o bem durante toda a vida.
         - Mas não seremos julgados com base em apenas essa vida. Somos o somatório de todas as nossas reencarnações e o resultado desta equação que determinara o peso de nossos espíritos; se leve subiremos aos céus, se pesado, desceremos ao inferno. Embora a salvação da humanidade seja obra de Deus, Ele a realiza através de cada um.
        - Não estou inclinado a acreditar em reencarnação. - E após uma pequena pausa, completou: - E tenho fé num julgamento justo, e só Deus pode fazê-lo.
        - E que explicação haveria para uma criança nascer cega, e outra não?
        - E qual é sua explicação para tamanha injustiça? - Perguntou, observando-a cuidadosamente.
        Como experiente exorcista que era, sabia que o demônio podia assumir qualquer face e inventar qualquer história. Por isso, e sem que ela soubesse, ao longo dos anos lhe aplicara algumas técnicas de exorcismo que resultaram inúteis; sinal de que era mais divina do que diabólica.
        - Darei uma explicação simplista, porquê já deve conhecer o motivo para aparente injustiça. Segundo a lei do carma só colhemos o que plantamos. Essa é a lei que ajusta a causa e seu efeito, ou seja, todo o bem ou mal que tenhamos feito numa vida nos trará consequências boas ou más para esta vida ou próximas existências. A lei do carma é imodificável porque é a justiça divina. Se enfrentamos muitas adversidades apesar de só praticarmos boas ações, não devemos procurar a origem desses sofrimentos nesta vida, mas em nossas reencarnações. E conforme este entendimento, se continuarmos praticando o bem nesta vida, na nossa próxima existência seremos uma pessoa afortunada. - Olhou para Adriano, antes de concluir:
        - Não há sorte ou azar, e nada é por acaso.
- Essa sua tese sobre o sofrimento de uns e de outros, não, é muito dura.
- Se pensarmos que como todo bom pagador estaremos saldando uma dívida para reaver o nosso crédito não sentiremos essa cobrança como castigo, mas como um ajuste de contas.
        Viu Adriano balançar a cabeça, enquanto fazia anotações. E aproveitou aquele instante de desatenção dele para se levantar e se dirigir para a saída.
Mas antes que desaparecesse atrás da porta, ele perguntou-lhe, sem erguer os olhos do caderno de anotações:
         - Salamandra, onde você esteve ontem à noite que não respondeu as minhas ligações?
         Lançou-lhe um olhar enigmático e, ignorando a pergunta, fechou a pesada porta atrás de si.
        Já em seus aposentos, Adriano relembrou a conversa e a partir daquela noite passou a  dormir com a luz acesa...

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