Parou abruptamente na soleira da porta ao avista-lo. E lá estava ele, propositalmente de costas para a janela, para a luz, para manter o rosto na sombra, como sempre esteve, como sempre fez, para analisar o visitante antes que esse tivesse tempo de analisá-lo.
Era uma raposa aquele ser de estatura mediana, corpulento, de rosto arredondado, olhos pequenos, perscrutadores, que aos desavisados pareciam inocentes. Mas ela o conhecia muito bem e sabia que não havia inocência naquele ser abatinado!
Adriano se virou para ela e num gesto teatral, pediu:
- Aproxime-se, Salamandra. Meu Deus! – exclamou. – Não é possível tamanho milagre! – e puxando-a pelas mãos a trouxe para perto da janela, para a luz.
– Devo estar sonhando! Talvez esteja senil! Ou você não é a velha Salamandra? – por um instante a observou desconfiado, para logo exclamar: - É você! É você, mulher maldita! Ó, perdoe-me, quis dizer bendita!
Ela viu seus olhos que de tão azuis pareciam quase brancos e a curiosidade deles cortou seu coração. Ele a observava como se ela fosse uma estranha, uma coisa atemporal.
- É inacreditável! Quem te viu, quem te vê! Além de nova está bela! E esses olhos explodindo de energia, força, desejo! Você transpira vida! – e mexia o rosto dela de um lado para outro num olhar analítico. - Confesse, está dominada pela volúpia!
Ela se desvencilhou de suas mãos e afastou-se, sentindo-se desnudada. Queria sair correndo, mas o dever lhe segurou ali. E ela sabia que se saísse dali teria que voltar, cedo ou tarde. Tudo era uma questão de destino.
- Onde está o padre Renzo?
- Deve estar cuidando do rebanho dele – e sorrindo, disse: - Sossegue, mulher, não te chamei aqui para perguntar sobre tua vida, digamos, particular, embora esse assunto me desperte grande interesse.
- Por que o senhor me chamou? – conseguiu perguntar.
- Já há algum tempo pensamentos estranhos têm me atormentado, e fico lembrando de você, do passado.
Adriano se sentou na sua cadeira de espaldar alto e fez um gesto para que ela se sentasse também.
– Quer um café? Água? Talvez alguém tão jovem prefira uma cerveja? – e riu alto.
- Por que me chamou? – tornou a perguntar com o estomago embrulhado, e com vontade de chorar.
Conhecia aquele bispo há tantos anos, talvez antes mesmo de ter nascido, e sabia com absoluta certeza de que não sairia ilesa daquele reencontro.
De repente, ele ficou sério:
- Sempre busquei todas as respostas no Evangelho que, aliás, sei de cor. E sempre as encontrei. Entretanto, a semente de uma dúvida capital foi plantada em minha alma e começou a germinar indiferente aos meus esforços para sufocá-la. Tentei extirpar de mim o broto, mas nenhuma oração ou penitência conseguiu evitar que crescesse. Então perdi a paz, e numa tarde de grande desespero, me sentindo totalmente desamparado, apelei para Deus como nunca antes havia feito, e Ele me disse: "operei um milagre de carne e osso e você o ignora?"
Ele se calou e a observou atentamente. E continuou:
- Tenho analisado algumas circunstâncias, alguns acontecimentos, e te confesso humildemente que estou muito confuso, cada vez mais confuso. – Ele tossiu limpando a garganta. – Para não me alongar, o seu caso, por exemplo. Você era um ser desprezível, vivia amarrada que nem um bicho raivoso, na mais completa miséria, ao Deus dará. Você lembra desse tempo, Salamandra? Ou Ele renovou sua memória também? Vejo que não, vejo nos seus olhos que lembra de tudo! Então numa noite você deixou de ser a representação viva do mal para se tornar um ser divino, idolatrado por todos! Você se recorda de tudo nos mínimos detalhes?
As lembranças dele feriam de morte o seu coração. Era sua vida extraordinária que estava sendo reavivada por aquele homem cheio de amargura. E ela já estava tão distante daqueles dias, daqueles acontecimentos! Era como se fossem duas pessoas em uma só, só que a daquela história já não existia mais, embora jamais poderia esquecer quem fora, ninguém esquece!
- O que quer de mim?
- Que me revele tudo que sabe...
E ela decretou:
- Você não suportaria o peso de tamanha revelação!
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.