Ficou ali sentada, lembrando do tempo passado, dele antes e de há um minuto atrás. O passado lhe trazia uma lembrança de medo, uma ameaça escura e fria, onde a atuação de Adriano fora determinante para seu futuro. E agora via que ele fazia parte do seu presente também, e que alguma coisa dele fazia parte dela. Não havia mais tempo para fugir de Adriano, como parecia não ter como escapar de sua infinidade. E viu, estupefata, a beleza de tudo que acontecera, e isso a consolou. Não perdera nada, concluiu, e não seria agora que perderia.
- Te chamei aqui porque gostaria de confirmar algumas conversas que tivemos ao longo desses anos. – disse. Pigarreou, limpando a garganta, e continuou:
- Nessa conversa gostaria de aplicar a hipnose, alguma objeção?
Salamandra o encarou, quase rindo, porque viu que, na verdade, ele tentava hipnotizá-la. Hipnotismo e hipnose eram coisas diferentes; a segunda era uma terapia de ajuda e quem precisava de ajuda era ele. Já o primeiro era o controle autoritário sobre a mente do outro, sem autorização desse, e para tanto o hipnotizador tinha que ter um espírito mais forte, caso contrário, seria ele o hipnotizado.
Ficou tentada a permitir aquela tentativa dele perscrutar livremente sua mente, já sabendo que seria ela a investigar a dele. Mas se conteve. Aquela técnica era uma atuação do espírito secundário. Trata-se de um caminho perigoso e, por essa razão, era melhor não a praticar.
- Se você não se importar de acabar sendo hipnotizado...
Adriano a fitou sem saber se ela estava fugindo da prova com uma mera ameaça, ou se, realmente, estava avisando-o do risco que corria. De qualquer forma, achou melhor preservar a intimidade de ambos. E para restabelecer o clima de cordialidade, perguntou:
- Gosta de lírios? – viu ela relaxar e olhar para o vaso onde lírios brancos se abriam perfumando o ambiente. Então sentou-se e abrindo seu caderno de notas taquigrafadas, disse:
- Então, segundo você, a existência da Terra é eterna. Existirá eternamente. Sem começo nem fim. É como se o espaço sideral não tivesse paredes, ou limítrofes. É isso mesmo? – e a ouviu confirmar.
- A idade da Terra é eterna e perpétua. Não é algo a se pensar. E não devemos perder tempo com isso.
Adriano escreveu alguma coisa no seu caderno e perguntou, sem levantar os olhos dele:
- Quanto a sua afirmação de que a humanidade surgiu há 500 mil anos, o que mais pode me esclarecer?
- Eu acredito que o surgimento da Humanidade foi depois do que estão dizendo, pois há 80 milhões de anos ainda não haviam bichos.
- Você tem certeza disso?
- Como poderia ter se creio ter sido criada há 500 mil anos? Mas sabemos que o tempo da criação da Humanidade são meras suposições, portanto, improváveis, porque o que se tem comprovado são os restos daqueles que trabalharam para compactar a terra, os dinossauros, que são dragões que andavam.
- E o dragão dourado muitas vezes mencionado por você, qual sua função nessa história?
- Ele foi o último dragão a fazer esse trabalho de preparar a terra. E isso foi há bem menos de 80 milhões de anos.
Adriano fez algumas anotações e se voltou para ela:
- Você afirmou que o Bem fugiu, e o Mal dominou o mundo. Por que isso aconteceu?
- Por que Deus Criador quis. Naquela época, as divindades do mundo dos deuses corretos estavam com medo por este ter se tornado um mundo de divindades malignas. Por isso, fugiram e se tornaram budas, como forma de prevenir o domínio das divindades malignas. Inclusive, dentre os líderes, teve aqueles que não aceitaram se tornar um buda, e perderam para as divindades malignas e se tornaram malignas também. Até alguns serviçais do deus-ancestral também caíram junto com elas.
- É tão fantasiosa sua versão do Bem e do Mal! – exclamou Adriano.
- Pode parecer que sim, mas esta é a origem exata da Escritura que ensina que o Diabo é um anjo caído.
Adriano levantou-se e contemplou o jardim pela janela. Havia uma magia envolvendo aquele ser, algo indefinível, um mistério que lhe causava medo. Mas o que podia temer? Já não sabia tudo que precisava saber para acreditar nela? O que faltava para tomar sua decisão? Voltou-se e pediu:
- Gostaria que me falasse novamente sobre a arca de Noé.
- Não tem nada de divino na história de Noé. Posso dizer que se refere a uma enorme inundação, que ocorreu porque nessa época o fundo do oceano era raso, por isso, quando chovia muito, inundava tudo. Na história do Noé existe uma teoria que afirma terem sido cem dias de chuva e outra afirma que foram quarenta; de qualquer forma, foi o suficiente para causar uma inundação rapidamente. Quando a água, com a contração da crosta, em sua maior parte foi acomodada e secou, surgiram ilhas e países. Por isso a arca encalhou inesperadamente em terra firme. Por outro lado, a cada grande submersão de terras o mar foi ficando mais profundo. A Terra se transforma. Conforme a humanidade gradualmente vai evoluindo, os seres vivos e a Terra também vão se transformando.
- Então a arca de Noé não é uma fábula? Nem um milagre divino?
- Não, não é.
- E Adão e Eva?
- A historia de Adão e Eva no Jardim do Éden oculta um profundo mistério que será pouco a pouco esclarecido. Mas o episódio do fruto proibido mencionado no Livro da Gênesis do Antigo Testamento trata-se, evidentemente, de uma metáfora, pois a maçã é a Ciência.
Adriano refletiu sobre aquela revelação tentando mensura-la, mas percebeu de pronto que era incapaz de fazê-lo sem a ajuda dela, e por isso, pediu:
- Você pode esclarecer inteiramente esse mistério?
- Não.
- Por que não quer?
- Não, porquê não sei.
Ele levantou os olhos das suas anotações e voltou a encará-la, se perguntando se devia acreditava ou não em tudo que lhe dizia aquele pseudo zumbi. Porque ela não era um espírito errante, mas também não era um ser humano normal, isso ela não era. Quem era Salamandra?
- Preciso que me conte tudo que sabe. – declarou.
- Antes, porém, é preciso que faça de sua mente uma tábula rasa, pois, caso contrário, não poderá entender.
Adriano pensou que era muito fácil para ela deixar qualquer certeza para trás, visto que não tinha nenhuma. Mas para ele tudo era muito complicado. Nascera numa família religiosa, cheia de escrúpulos e superstições, que via pecado nas mínimas manifestações de afeto e desejo e que mais temia a Deus do que O adorava. Crescera servindo a um Deus estranho, misto de bondade e crueldade, pois castigava ou perdoava ao seu bel prazer, e que decidia se ficava irado ou tranquilo conforme circunstâncias alheias à vontade dos homens; quem se salvava do infortúnio agradecia a Ele, mas quem morria? Alguns agradeciam, outros atribuíam a Ele o castigo por um erro cometido ainda que não soubessem qual. E os céticos diziam, nessas horas: Deus não existe, pois não há uma ordem invisível controlando o mundo, é tudo fruto do acaso, de sorte ou azar.
Tomando coragem se voltou para ela e perguntou:
- Salamandra, qual é a origem do pecado?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.