Capítulo 56

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      No salão, onde a música não parava e a animação geral reinava, um pequeno grupo acompanhava atento a conversa entre o padre e o surfista. Não era um assunto de fácil compreensão por pessoas comuns, porque era uma questão cercada pelo misticismo. Mas haviam pessoas ali que se interessavam por assuntos daquela ordem.
       Além de Margot, cujo olhos piscavam de admiração pelo irmão e por suas histórias fantásticas, e de Renzo que se mantinha atento ao discurso de Adriano, haviam os crédulos e os incrédulos. E Renzo sabia que todo o problema do mundo estava nesse antagonismo. No entanto, se o mundo era o mesmo para crentes e descrentes, e se havia um só Criador, não fazia sentido alguma as divergências.
Mas o ego humano era uma cilada que tramava enredos perigosos, e quando os acontecimentos se desencadeavam e a pessoa se via sozinha, sem domínio de si mesma e da própria vida, era tarde demais para voltar no tempo e retocar sua obra prima: o próprio destino final. Então, percebia derrotada que lutara contra tudo aquilo no qual sempre acreditara!
        Renzo presenciara a encenação de Jalou e vira como Salamandra sobrevivera a ela. Salamandra era uma deusa existindo entre mortais, e tinha provas concretas disso. Ela era um ser dotado de um destino extraordinário e de uma proteção sobrenatural, e se as pessoas soubessem disso, em vez de provocá-la teriam por ela respeito e admiração. Afastou as divagações para voltar a prestar atenção no bispo, que perguntava para o homem tatuado:
         - Mas por que você não conseguiu tocar a sua sereia?
        - Por que quando me aproximei, ela mergulhou e desapareceu.
        Ruy não apreciava conversas filosóficas, onde cada um dizia o que pensava como se realmente pensassem fora da curva, e nem daquelas conversas que questionavam a fé dos outros, como se fosse possível ao homem entender Deus em toda Sua amplitude. Ele acreditava em Deus porque podia Senti-lo aonde estivesse, mas esse sentimento não tinha relação com qualquer religião; era mais uma questão de sentir, e não de acreditar. Não era fervoroso e nem devotado como aquele padre, mas amava profundamente a energia criadora de toda a vida.
         - A sua sereia também desapareceu? – Ruy perguntou para o bispo.
        Adriano riu alto por alguns segundos, antes de esclarecer que nunca tivera aquele privilégio.
       - Então não acredita que elas existem? - Perguntou Ruy, decepcionado.
       Naquele breve instante que ocorre entre a pergunta e sua resposta, a mente de Adriano se deparou com o semblante radiante de Salamandra, e respondeu:
        - Se eu não acreditasse em mistérios estaria negando minha fé em Deus.
        Não suportando mais tanta besteira, Theo disse, interrompendo o diálogo entre Adriano e Ruy:
        - Nec caput nec pedes. – Afirmou, concluindo que o padre era mais um religioso se achando na obrigação de salvar a tudo e a todos em nome dele mesmo.
        Adriano imediatamente se virou para Theo, diagnosticando um materialista. Enxergou naquele homem o retrato vivo do apostolo Paulo, antes da conversão, altaneiro e dotado de grande loquacidade, depois dela, obsequioso e reflexivo. E suspirou, ao concluir que sua tarefa não era nada fácil, porque um coração seco era como a terra árida, onde nada vingava. Mas sua missão era justamente essa: semear num solo infrutífero, pois Deus não queria salvar quem já estava salvo. Se Saulo se tornou Paulo, por que aquele homem não se tornaria outra pessoa também? Mas não tinha tempo agora para travar aquela batalha, porque não lhe passara desapercebido o sumiço de Salamandra, e estava ali por causa dela. Precisava encontrá-la, para a segurança dela e da sua própria. Por isso, desculpou-se e se afastou, deixando a todos no vácuo, inclusive Theo.
        Theo bufou, para expelir em surdina o grito de guerra contra aquele guardião de sermões que nunca mudaram a condição do mundo! Seu sangue viking ferveu nas veias pronto para o combate, unilateralmente adiado. E agora, o que faria com aquela fúria?
        - Relaxa, marujo... – sussurrou Margot, tocando de leve seu peito.
        E aquele gesto tão simples e inesperado teve o poder de apaziguar o espírito combativo do guerreiro. Ele sentiu seus músculos relaxarem, sua vontade, ceder, seu coração voltar a bater tranquilo e descobriu, naquele instante, que aquela jovem era a sua salvação. E decidiu ser o seu salvador também:
        - Conheço algumas pessoas no meio artístico e vou ajudá-la.
        Margot sorriu feliz da vida, e se aproximou ainda mais dele, já disposta a recompensá-lo; nunca na vida obtivera qualquer ajuda sem ter que ceder um pedaço precioso de si.
        Homem experiente que era, percebeu a intenção velada por trás da aproximação, e esclareceu: 
        - E não quero nada de você por isso, além da sua companhia.
        E o sorriso da jovem o contagiou, fazendo-o sentir-se, subitamente, muito feliz. Então a verdadeira felicidade advinha simplesmente de fazer outra pessoa feliz? Era esse o segredo da felicidade?
         Sentindo-se como nunca se sentira antes por fazer algo por alguém sem esperar contrapartida, Theo bebeu o drinque numa golada e puxou a jovem para o centro do salão. 
        Renzo que a tudo observava sem se fazer notar, viu Adriano suplantar o impulso de catequizar aquele senhor distinto, e se afastar. De há muito percebera que Adriano buscava desesperadamente por uma confirmação, mas, apesar de observá-lo atentamente, não conseguira descobrir a dúvida atroz que achatava aquele religioso irrepreensível. Nem mesmo quando saíram para beber e ele acabara embriagado conseguira adentrar nos mistérios que ele guardava a sete chaves.
        Naquele dia da bebedeira, Adriano o chamara para uma conversa atípica, pois fugia à hora habitual. Então comentara com ele que fora convidado para a inauguração da casa de Murilo e que Salamandra estaria na festa. Viu Adriano se agitar, e ouviu um inesperado desabafo por parte dele. E ao seu final, mais em tom de ordem do que de um pedido, o bispo dizer:
        - Me arrume um convite para essa festa.
        Na manhã seguinte ligou para Murilo, e antes que a noite se abatesse sobre a cidade, o convite chegou ao seu ansioso destinatário. E por isso Adriano estava ali, naquela festa, agindo como se estivesse no seu gabinete  de trabalho.
        Assim que Salamandra se afastou do pequeno grupo, Murilo também fez a mesma coisa, seguindo-a discretamente. O feitiço que ela jogara sobre ele anos atrás o havia subjugado para sempre, e só agora sabia disso.
Ruy também viu Salamandra se afastar e assim que pode começou a procurá-la, subitamente interessado naquela mulher misteriosa. Ela acreditava em sereias e ele também, portanto, tinham algo em comum que era muito incomum.
        Mas a atenção de Salamandra não era para alguém que ela conheceu hoje ou que conheceria amanhã, para fazer parte de sua vida era preciso alinhar sonhos e estar dentro do mesmo tempo que ela.

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