Capítulo 32

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Eram-lhe dolorosas essas lembranças, e se pudesse as apagaria de sua memória. Mas era a história de sua existência e não tinha como fazê-las sumir sem que sumisse também. Talvez, quando o inferno e o purgatório desaparecessem para todo o sempre consumidos pelo fogo divino, sua alma fosse aniquilada neste incêndio de proporções inimagináveis, mas até lá teria que conviver com seus conflitos íntimos. Sua sede de saber o que ainda não sabia a consumia. Não podia negar que era um repositório de segredos seculares, mas faltavam informações para fechar com exatidão esse inventário fantástico.
No convento fez amizade com muitos espíritos que lhes revelaram segredos do mundo onde viviam. Gostava de ouvir as histórias que lhes contavam, e as vezes chorava de tristeza porque narravam torturas espirituais, mas também ria muito, por que alguns deles eram engraçados. Uns lhe faziam companhia durante o dia, outros, noite afora. De repente, percebeu que não estava mais sozinha. E foram os notívagos que a conduziram para a biblioteca abarrotada de livros antigos onde descobriu que não só sabia ler, como poderia fazê-lo sem o embaraço de idiomas. Aquele hábito noturno lhe esclareceu muitos pontos obscuros e criaram outros tantos.
Em aramaico leu escrituras sagradas que afirmavam que a teoria da evolução era fantasiosa, porque tinha sido Deus a criar o Céu e a Terra. No começo era a escuridão, o nada. Eis que um dia a ordem de Deus ecoou no buraco negro e se fez a luz para além de suas fronteiras.
Segundo essas escrituras, no começo o Universo era uma massa de vapor de água, materialização dos respingos do berro Divino. Parte deste vapor se evaporou e a outra condensou, então o que era leve compôs o céu e o que era pesado compôs a terra. E no céu formaram-se o sol, a lua, as estrelas e os planetas. E que a Terra logo que ficou pronta era um grande mar de lama, que pouco a pouco foi recebendo luz e calor e foi endurecendo. Nessa época os grandes répteis surgiram com a missão de compactarem o solo. Assim a terra se solidificou e aplainou-se. Foi nessa época que surgiram rachaduras que formaram os rios e os vales. E só então Deus povoou sua criação com seres à Sua semelhança. Mas Deus só criou os primeiros Homens.
Esses escritos sagrados também narravam a trajetória humana no planeta; como os homens se recriaram e se expandiram. Por muitas Eras os homens copularam como animais, inseminando várias fêmeas ao mesmo tempo. Em decorrência disso tiveram que interromper seus passos sobre a Terra para verem o florecer desses frutos. Depois tiveram que esperar que suas proles se fortalecessem para conseguir segui-los na caminhada em busca do Céu na Terra. Nesse descanso forçado criaram raízes, e formas de sobreviverem às inúmeras intempéries. Os mais fortes seguiam em frente e os varões replicavam o modelo do acasalamento desenfreado. Os mais fracos ficavam para trás, igualmente recriando novas gerações afins. Assim, membros de uma mesma ascendência procriaram entre si, e o homem criou outros homens com a benção de Deus. Por isso a crença de que somos todos irmãos misteriosamente se perpetua através dos séculos.
Eram narrativas tão emocionantes que chegava a chorar! Elas lhe soavam como um romance, que narrava o amor do Criador por sua criação.
Dia após dia, noite após noite recebia a visita desses espíritos com quem mantinha uma conversação inaudível. Mas ainda que pudessem ser ouvidos, não faria qualquer diferença para aqueles seres embotados de fé cega que ali viviam, porque a ignorância voluntária era confortável e segura.
Ninguém se importava com ela, exceto aqueles espíritos. Com a passagem do tempo aprendera a reconhecê-los, e dentre eles havia um que lhe parecia mais afeiçoado, porque tudo que lhe contava confirmava o que já sabia. E nas novidades que lhe trazia intuía a mais pura verdade. E quanto mais se aproximava dele mais enxergava seu brilho, a luz que emanava.  Foi quando entendeu que também haviam espíritos belos e feios, luminosos e opacos. E que todos tomavam a forma esférica quando se movimentavam, mas os luminosos se deslocavam velozmente, os opacos com extrema lentidão. Talvez alma tivesse peso também, mas isso não conseguiu confirmar.
Essa confiança nele se consolidou quando aceitou o convite para visitar o mundo em que ele vivia. Ao dar-lhe a mão um clarão de luz inesperado a ofuscou, forçando-a a fechar os olhos. E foi então que viu sem realmente ver um lugar vazio, e uma voz ordenando que pensasse em algo. E antes mesmo de concluir o pensamento uma mesa surgiu à sua frente para em seguida surgir um coelho, que também sumiu rapidamente. E a voz ordenando que não parasse de pensar, mas nem seu pensamento era tão veloz, e exausta mentalmente novamente viu o vazio, o nada. Ela já não conseguia mais criar imagens naquela imensidão.
Abriu os olhos e se viu na sua cela.
- Não vamos?
- Já fomos.
- Mas não sai daqui!
- O mundo espiritual é o mundo do pensamento. Se aqui houvesse de fato alguma coisa não seria o meu mundo, mas o seu.
E Salamandra entendeu como era o mundo após a morte. Não havia nada na outra dimensão da existência, nada além do sentimento e do que se sentia.  Nada além daquilo que se sabia. Nada além do que se conhecia. O mundo dos espíritos era o mundo da Fé.
E lembrou, também, do estranho andarilho que chegou na cidade com os pergaminhos debaixo do braço. E que após entregar algumas folhas amareladas para o bispo, desmaterializou. Sabia que a maioria dos pássaros se desmaterializam, e esse fenômeno acontecia com muitos outros animais. Mas naquela tarde indolente presenciou um homem sumir no espaço. E soube que ele era um Sennin, um ermitão das montanhas que dominava a técnica de deixar de existir. E por anos a fio sonhara em sumir do mundo daquele jeito, sem deixar qualquer vestígio de sua passagem por ele! Mas, pelo contrário, seu corpo se renovava de tempos em tempos, numa existência infinita, aprisionando sua alma.
Haviam tantos mistérios permeando a criação da humanidade e da Terra que nunca, jamais, os homens haveriam de descortinar. E ela era um desses contratempos na ordem do mundo, na engenharia da criação, na finitude de tudo que nasce, porque ela era perene.
E foi essa vida ininterrupta que lhe permitiu saber que houve uma época em que os seres humanos eram muito altos, podendo atingir até 5,45 cm.
As pessoas eram grandes pois tinham que lutar contra as feras gigantes. E esse combate era a atividade central e por causa dela a sabedoria humana pôde avançar. Quando esses animais foram extintos, os homens se dedicaram as construções que perpetuariam sua passagem por este planeta. E edificaram Stonehenge, as pirâmides do Egito, Atlântida, as linhas de Nazca, e tantos outros... Foram esses ancestrais os responsáveis por esses mistérios intrigantes! E sabia com certeza absoluta que não lhes custara nenhum esforço construí-los.
Quando terminou esta época o ser humano começou a lutar entre si. E desde então as pessoas passaram a ficar cada vez menores. Porque o homem quando luta com outro homem se apequena.
Murilo a aguardava na entrada do restaurante. Quando o avistou a sensação de afeição pareceu renascer e sorriu. Eles tinham um passado em comum, onde tinham sido felizes. E as lembranças felizes não se apagam jamais!
- Eis que meu coração mais uma vez bate acelerado! – disse colocando a mão dela em seu peito.
Salamandra pôde sentir aquele coração bater por debaixo da camisa. Quantas e quantas vezes descansara naquele peito forte! E retirou a mão com delicadeza, para não ofendê-lo.
Entraram e escolheram uma mesa protegida do sol. Ele mantinha a distância que ela impunha, e talvez seu erro era esse, esperar que ela tomasse a iniciativa. Mas não tinha como impor qualquer coisa àquela mulher, e ele sabia disso há muito tempo.
A cerveja chegou, e brindaram ao Monte Fuji.
- Lembra daquela escalada que fizemos para ver o sol nascer? Você queria visitar o templo onde era cultuado o dragão dourado.
Como poderia esquecer? Foi ali, na nona estação, ao chegar no templo, que teve a visão de que fora uma atlante. E que o dragão que protegia aquele povo não submergiu com ele e após salvá-la, passou a acompanhá-la, única sobrevivente da terrível inundação.  E foi também naquele santuário que viu que haviam outros dois dragões, um preto e um vermelho, comandantes da duas vertentes do materialismo. E lhe foi revelado que os deuses tiveram que optar entre serem budas ou dragões. Os menos afeitos aos conflitos se tornaram budas, o mais guerreiros tomaram a forma de dragões.
- O Monte Fuji é a espinha dorsal do mundo - declarou com uma expressão enigmática.
Ele, como um curioso do mundo, e como homem que gostava do jogo da sedução, rendia homenagens a ela. Nunca conseguira esquecê-la, nem como mulher, nem como contadora de histórias. Nunca pudera ver nada daquilo que ela garantia ver, mas acreditava nela. E nunca se deitara com outra mulher como ela, talvez porque era pompoarista.
Murilo segurou sua mão sobre a mesa, fitando-a nos olhos. E Salamandra pensou como seria reviver, agora, o seu passado com ele.

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