Capítulo 77

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A maioria das pessoas achavam as aventuras, perigosas, mas para ele a rotina era que era letal. Por isso fugia da mesmice, do pó que o tempo depositava onde não houvesse um sopro novo; preferia ser um castelo de areia na beira do mar do que ser raízes em qualquer lugar. E para saciar a loucura que havia no risco, na incerteza, no suicídio sem intenção, mergulhava no destempero do mar. Mas agora dirigia com cuidado, para não perder de vista o semblante sereno e o meio sorriso daqueles lábios rosados.
Nunca na vida sentira algo igual, nem quando sobreviveu à maior onda surfada. E pensava como partiria ao encontro de outras ondas se o seu coração agora batia em terra firme. Porquê, inexplicavelmente, sentia no ar algo de pregresso, um toque suave de mistério e de fatalidade. E era uma sensação tão inebriante que a ela se entregava de bom grado. Quanto enganado estava quando acreditou que vencer o mar era seu destino.
De repente, desembocaram numa praia quase deserta se não fosse alguns surfistas no mar.
Desceram do carro e ele exclamou:
- O peso do universo está sobre as nossas cabeças, e só podemos senti-lo quando estamos sob este céu... Eu gosto de sentir esta energia, me sinto bem. - E tirou a camisa.
Salamandra viu, então, a tatuagem do Dragão Dourado.
- O dragão dourado!
Ruy sorriu, concordou e perguntou se ela conhecia a simbologia por de trás dos dragões.
- Este dragão simboliza o império divino.  
Ruy a encarou, subitamente interessado:
- E o que isso quer dizer?
- Ele é o Sol, é a energia do Fogo que destrói para permitir o renascimento, a reconstrução. - Foi a vez dela encará-lo e perguntar:
- Você não sabia disso?
Não, não sabia, mas bem que gostaria. Porquê queria muito poder convencê-la de que mereço sua atenção. - Dentro dele tinha a insegurança, tinha a ansiedade, tinha o medo, mas também tinha a vontade de seguir em frente e te-la para sempre.
Ruy acreditava na lei do retorno, nesse mecanismo chamado Tempo, que colocava tudo e cada pessoa no seu devido lugar. E com o mar aprendera que o tempo tinha ensinamentos preciosos; era preciso aceitar o ciclo da vida, o fluxo da passagem de todas as coisas e entender que esperar e observar era viver, ainda que parecesse que não. Tudo tinha seu tempo certo, era só uma questão de paciência.
Mas o conselho de que ao se afastar se entendia muita coisa não servia mais para ele no momento, porquê tudo o que queria era estar junto dela e, se lhe fosse permitido, dentro dela. O mar e o sol já não giravam sua vida, ele havia chegado, enfim, no muro.
Salamandra fazia tempo sabia do poder que tinha, e por isso não tinha medo de ficar sozinha ou enfrentar qualquer pessoa. Ela passara pelos momentos mais obscuros de sua vida, sozinha, o que lhe mostrara que não precisava de ninguém. E quando uma pessoa não temia nem mesmo a morte, perdia o medo de tudo.
E acabara por descobrir que o vazio que carregava era uma falta de conexão com ela mesma, e que ninguém além dela tinha a obrigação de preenchê-lo. E foi assim que aprendera, sofrendo muito, que encontrar a  felicidade dentro dela era muito difícil, mas encontrá-la em outro lugar era impossível. Então não esperava mais que as coisas ou as pessoas mudassem, ela mudava e percebia que nada mais precisava mudar.
Percebeu que a realidade era dura, as pessoas não eram perfeitas, mas precisava saber lidar com isso. É que às outras pessoas era dado o privilégio de serem perfeitas apenas para quem as merecessem, mas a ela só era permitido ser boa para todos, por isso precisava saber distinguir cada um que dela se aproximava. Não evitava esse contato, porquê os encontros faziam parte de seu passado longínquo, mas não podia deixar que lhe fizessem mal, e por isso só podia concordar com aquilo que acreditasse ser o certo, e nada mais. E a vida ia afastando silenciosamente quem não estava na mesma sintonia que a dela. Mas as vezes precisava usar de um estranho poder para sentir e, até, enxergar a aura das pessoas. E não adiantava uma pessoa agir pelas costas de um sensitivo, porque ou o vento contava ou ele sonhava, e ela sonhara com ele.
       Ah, o tempo... só ele tinha este poder; desmascarar as aparências, revelar mentiras, exibir o caráter e comprovar milagres, e reencontrá-lo agora era um milagre!

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