Capítulo 78

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      Sentaram-se na areia , bem próximos, menos do que Ruy gostaria, mas o suficiente para misturarem suas auras como Salamandra queria.
      Ruy sentia renovar dentro de si o desejo de amar de há muito esquecido, e ela era o ponto central da questão. Sentia transbordar em si um espirito romântico estranho, uma disposição excepcional para o amor. Mas o amor pelo amor que desencadeava a exaltação do espírito, que revelava os elevados ideais que iam muito além do desejo carnal. Era um impulso romântico em sua forma mais pura que terminava atraindo a pessoa para a criação do compromisso de um relacionamento, coisa que ele nunca sequer pensara firmar na vida.
       Sempre tivera o espírito livre, avesso a qualquer solidez que pudesse contê-lo, no entanto, agora queria viver com ela uma experiência romântica elevada, onde gentilezas são trocadas, galanteios são feitos, e todas as demais sutilezas que ocorriam quando se abria o coração à experiência sincera de amar. E estava disposto a um movimento de conquista e sedução para demonstrar o melhor lado da sua natureza romântica.
        - Tenho certeza que nos conhecemos de outras vidas. Você lembra de mim?
         Salamandra o fitou por alguns segundos, antes de responder:
         - Por que não me conta as suas lembranças? Sua pergunta dá a entender que deveríamos ter lembranças em comum. - Sorriu, saboreando aquela convivência tão próxima, amigável e desafiadora.
O diálogo entre eles parecia um trocadilho, um jogo de palavras que davam margem a diversas interpretações que podiam resultar em equívocos por vezes engraçado.
        Ela lembrou do sonho que tivera e se perguntou se deveria contar para ele; porquê os sonhos não faziam parte da realidade, mas, o que de fato era real? Todos nasciam do nada e sumiam do nada! Então, que realidade era essa? Por que os homens se apegavam à este mundo se não pertenciam à ele?
        - Por quê você escolheu enfrentar ondas gigantes?
        - Acho que foi um processo natural. Dizem que a vida é assim: ou se cria coragem e decide o nosso rumo, apesar do medo, ou ela escolhe por nós e precisamos conviver com o que vier. Eu só encarei com coragem o que ia surgindo...
        - Você não sente medo do mar? De morrer engolido por uma onda dessas?
       - Não é a morte que me importa, porque ela é um fato. O que me importa é o que faço da minha vida, enquanto a minha morte não acontece, para que essa vida não seja banal e pequena.
        - Mas o mar o afastou do mundo e das pessoas. Não sente necessidade de ter sempre uma mesma pessoa ao seu lado?
        Ruy lembrou-se das suas tentativas frustradas de conciliar as ondas com as curvas femininas, para, enfim, entender que não dava para forçar alguém a ir pelo mesmo caminho que o dele. Haviam lhe dito que quem amava de verdade fazia questão de caminhar ao lado do outro, mas ele era feliz sem amor e as mulheres que conhecera também o eram porquê prosseguiram seus caminhos separadamente.
       - Primeiro você aprendi a ser feliz sozinho, então não importa quem chegue ou quem se vá, a sua felicidade sempre fica. E a solidão é perigosa e viciante. Quando você se dá conta da paz que existe nela, não quer mais lidar com pessoas. Mas e você, de que seus medos já fizeram você desistir?
       - Acho que de nada...
        Viu que ele esperava suas confissões em retribuição às dele, então disse:
       - Como você, que tem tatuagens no corpo, tenho algumas na alma.
       Aquelas palavras ressoaram em Ruy como eco que se reproduz incessantemente. E em meio aos rumores das suas elucubrações, concluiu que todas as suas tatuagens, exceto a do dragão, tinham um significado, então, as marcas naquela alma também deviam ter um motivo de ser, e a curiosidade o dominou. Mas não ousou perguntar, aprendera com o mar a esperar o momento certo.
        Salamandra procurava um motivo para esconder dele a verdade, mas não encontrava. A sua luz precisava iluminar o caminho dele, e decidiu fazer algumas revelações.
       - Nos amamos na adolescência de nossos espíritos.
       Talvez fosse isso, essas declaracões que precisava para clarear as próprias ideias, e saber o caminho para alcançar o coração daquela mulher linda, inteligente e... desconcertante.
       Ruy forçava a mente para descerrar a cortina diáfana que o separava desse passado em comum, mas reavivar detalhes perdidos no tempo, esse tempo que a tudo transformava num quase nada, era um esforço herculano, senão, impossível. Lembranças existiam de per si, ou seriam criações da mente que costumava enxergar somente aquilo que gostaria de ver. Mas precisava dela e esperava o momento certo de lhe falar que sentia um amor profundo e que queria dedicar-lhe sua vida.
        - Nossos espíritos são tão antigos que esquecemos quem somos. Nosso mundo dançou sobre o mar. E atrás do filho veio o pai e depois o avô, e nosso povo se acabou, tudo perdeu a cor e o brilho no silencio da profundeza do mar.
       Sua intuição lhe dizia que ela falava menos do que sabia, para não falar o que não podia. Mas permaneceu em silêncio, compenetrado, aguardando o gatilho que disparasse suas lembranças dessa época de sua vida. De repente, aquela descrição o atingiu como um raio e se viu num lugar perdido nas brumas seculares.
         O que estava acontecendo com ele? O que ela estava fazendo com ele? Estava em paz quando ela chegou, e agora via ondas verticais gigantes, em pleno ar, prestes a engolir o mundo. E a luz do Sol correr para se esconder, para a luz da lua dominar o fim de uma Era e de um povo.
       De repente, acordou numa tarde linda que não queria se pôr, onde a tranquilidade das batidas das ondas na areia soavam serenas. Olhou para ela, confuso, como quem desperta de um pesadelo muito real.
       - Acho que dormi, não sei...
       Olhou para ele com zelo, porquê sabia que devia estar muito confuso. Ela sabia que o tempo que restava era pouco, muito pouco, para desperdiçá-lo, por isso decidira hipnotizá-lo. Nada neste mundo durava para sempre, a não ser ela. E agora o libertava desse estado hipnótico.
        Uma chuvinha fina caiu, mas logo passou. Pássaros voaram baixo no céu onde nuvens dispersas coavam os raios do sol; e o mundo se coloriu de um tom dourado.
       - Eu quero fazer um relicário desse amor secular. - Disse, Ruy.
        - No que está pensando?
        - Numa tatuagem. Uma tatuagem da deusa Konohana.

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