Capítulo 1

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Minha cabeça dói quando acordo, consequências de passar parte da madrugada em prantos. A janela acima da minha cama está aberta e o frio, que a maresia trás diretamente contra meu corpo, indica que mais uma vez chutei os cobertores para fora da cama. Costumo fazer quando tenho pesadelos que me amedrontam ao ponto de eu me debater. Me sento devagar, instintivamente segurando minha cabeça, que não para de latejar, um bocejo irrompe de minha boca. É dia dos Tributos, ou como minha mãe particularmente gosta de apelidar, dia dos defuntos.

Completarei anos cerca de 6 semanas depois dos Jogos, será meu último ano como Tributo, a última vez que temerei por mim sendo jogada em uma Arena mortal, com outras crianças mortais que se armarão com armas mortais. Embora seja meu último ano, não será a última vez que terei pesadelos antes do dia da colheita, já que meu pequeno irmão adotivo em poucos anos será obrigado a participar da Colheita.

— Malia, hora de se arrumar. — escuto minha mãe e resmungo por longos segundos.

Há pelo um menos um lado positivo em um dia de Colheita, ninguém no Distrito 4 precisa trabalhar, às pessoas têm aval para ficarem em suas casas aproveitando os últimos momentos com suas crianças, sei que alguns Distritos não tem esse privilégio. Porém, comemoro que não precisarei ficar na fábrica até tarde empacotando sardinhas.

Me arrasto da cama em direção ao único banheiro em nossa casa, arrancando minhas roupas pela cabeça e chutando a calça de pijama para dentro do cesto. Ligo o chuveiro na maior potencia e gasto a dose de água quente que tenho direito. Não demoro mais que o necessário, o tempo é contado pela minha mãe, que berra minutos depois me mandando sair.

Em meu quarto, um vestido verde pastel de alças delicadas me espera em minha cama. Não consigo não sorrir para a beleza dele. O vestido caiu como uma luva, mesmo tendo ficado levemente apertado na região dos seios, é um dos vestidos de minha mãe, os vestido que ela usava quando era Tributo.

— Está perfeito em você. — diz em um tom calmo.

Minha mãe não sabe disfarçar o medo que sente de me perder, ela me abraça apertado, e eu retribuo com toda vontade, sinto seu beijo terno em meu ombro. Ela me faz sentar na cadeira da penteadeira, enfrente ao espelho que está trincado no canto superior. Cortesia de Zyan, meu irmão mais novo. A rachadura não me impede de encarar minha mãe enquanto ela trabalha em meus cabelos, que são do mesmo tom castanho-mel que os seus, observo seus dedos ágeis trabalhando nas mechas no topo da minha cabeça, e de repente sei que ela fará apenas uma trança e deixará meu cabelo solto em ondas, natural, do jeito que ela prefere. Desvio o olhar quando vejo uma lágrima escorrendo por sua bochecha, e observo meu reflexo em vez disso.

Apesar de ter chorado grande parte da noite, meus olhos não estão inchados, minhas sardas em torno do nariz espalhadas por minhas bochechas parecem mais aparentes que nunca. Sou bonita, sei disso pois me pareço com minha mãe, uma cópia perfeita, com exceção dos olhos, os seus nadam em um verde-mar profundo, enquanto o meu é uma mistura de azul e cinza, iguais ao do meu pai, segundo ela. Nunca o conheci para poder dizer, minha mãe não me conta nem mesmo seu nome, tudo que sei é que ele precisou partir, mas nós amava imensamente. Hoje crescida, acredito que foi uma mentira para eu não ficar magoada com o possível abandono.

— Malia! Malia! — os gritos de Zyan ecoam pela casa.

O som dos seus passinhos me faz sorrir, assim como minha mãe, ele irrompe pela porta do meu quarto e para na minha frente. Seus dedos estão sujos de terra, agarrando pequenas flores azuladas, ele me olha com expectativa. Rio, mas apenas porque vejo olhar da minha mãe se tornar irritado ao ver a bagunça que ele fez com seus pés sujos de barro.

— Para dar sorte e você ser escolhida hoje.— ele diz.

— Nós queremos que ela não seja escolhido, Zyan. — minha mãe diz.

Estou rindo, enquanto minha mãe tem uma carranca. Não costumo rir no dia de hoje, mas Zyan é a luz em minha vida, ele me faz feliz em qualquer que seja a situação, sou apaixonada por ele e tão grata por tê-lo em minha vida. Zyan era um garotinho órfão, seu pai era marinheiro e morreu em uma tempestade não prevista, a mãe morreu em seu parto. Nossa vizinha o encontrou por causa de seus chorinhos de fome, eu tinha 13 anos na época, fiquei encantada no mesmo segundo. Minha mãe não hesitou em acolhe-lo, ele iluminou nossa vida desde em diante, não só as nossas como de qualquer pessoa que o conheça.

— Mas ser escolhido não significa prêmios?

O puxo para perto e mordo sua bochecha até ele gritar uma risada gostosa. Minha mãe nos separa antes que ele suje meu vestido e pede para ele deixar as flores em cima da penteadeira. Ela explica pela terceira vez naquela semana que apesar de se chamarem "Jogos Vorazes" não é uma brincadeira de quem corre mais rápido. Na minha cabeça tecnicamente é, até porque quem corre mais rápido geralmente escapa com vida. Mas não a questiono.

Minha mãe termina meu cabelo, passa gel penteando minhas sobrancelhas, blush rosado em minhas bochechas alegando que sou branca demais para quem mora na praia, e finaliza com um gloss rosa. Quero dizer que moro na praia, mas meu turno na fábrica só acaba depois que o sol se põe e que eu quase nunca aproveito às luzes do dia.

Tomamos café em um silêncio que dura pouquíssimos segundos, Zyan começa a fazer suas 40 mil perguntas diárias. Ele quer saber; como as flores adquirem cor, se alguém as pinta, se o céu foi pintado e por quem, que meio de transporte às nuvens utilizam para se moverem por todo canto, se os passarinhos possuem seu próprio idioma, como os peixes conseguem ficar tanto tempo debaixo da água sem ficarem se ar, e mais um milhão de coisas que nunca me questionei. Explico com calma cada uma de suas dúvidas, porquê não sei se terei outra oportunidade para ouvi-las.

Assim que minha mãe leva meu irmão para se aprontar, meus ombros caem totalmente e meu humor morre. Não estou confiante para o dia de hoje, estou com uma sensação tão ruim que parece abafar meus sentidos. No verão passado uma praga se espalhou entre nossa população, foram tantas mortes que a capital precisou abafar o caso. A quantidade de crianças diminuiu em 33%, o que aumenta muito mais minhas chances de ser sorteada esse ano. Estou tão aflita que não consigo disfarçar quando minha mãe passa pela cozinha arrumando seus próprios cabelos agora, ela me vê sentada na mesma posição, ombros tensos.

— Não vai ser você, passarinho.— sua voz sai em um tom doce, seus braços me envolvem e eu absorvo seu cheiro.— Não se preocupe, certo?

Finjo um sorriso para tranquiliza-la.

70° edição dos Jogos Vorazes Onde histórias criam vida. Descubra agora