Capítulo 4

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Minha cabeça dói novamente, percebo que estou em um quarto desconhecido, os acontecimentos da noite anterior rapidamente me consomem. Sinto vergonha pelo que fiz, como me portei como uma descontrolada, Lark deve me odiar no atual momento. Lembro do seu grito de nojo e desespero quando sujei o tecido de sua roupa que deve custar mais do que já sonhei em pagar.

Alguém entra no meu quarto, um avox sinaliza para eu ir tomar banho, deve ser bem cedo porque está muito claro. Obedeço sem esforço, acho que acabei vomitando em mim, porque meus braços estão grudentos e meu cabelo fede, minha calça tem uma mancha escura perto do joelho. Descarto tudo em um cesto que não percebi ali no dia anterior. A água do chuveiro cai como uma benção, relaxando meus músculos tensos e me acalmando, me dando tempo para pensar.

Consigo ver melhor o design do banheiro, como é espaçoso e chique. Há um vidro enorme cobrindo uma parede inteira, exibindo meu corpo nu. Sou saudável porque sempre comi bem, não precisarei comer o dobro para ficar forte para os Jogos, talvez um pouco mais que o comum.

Saio do banho quando escuto batidas ritmadas na porta, vejo um novo conjunto de roupas que está sobre a cama, mais roupas em tons pasteis, às cores mais comuns em meu distrito. Dessa vez é um short bege e uma blusa da cor de coral, um pouco mais escura que o shorts. Coloco rapidamente temendo que alguém entre e me pegue com a bunda branquela de fora.

Sou levada por corredores que não me lembro de ter passado na noite anterior, meu estômago está se contorcendo de nervosismo novamente. Me sinto tonta, talvez seja porque não há nada em meu estômago. O cheiro de comida é maravilhoso, faz minha barriga roncar.

Não começaremos tão cedo. O treinamento oficial é só quando chegarmos ao Centro de Treinamento, mas posso explicar algumas coisas até lá.

Planto meus pés no chão imediatamente. O avox para logo ao meu lado, nem mesmo me olha, mas me espera pacientemente.

De repente tenho 5 anos e estou vendo algo se movendo na água, braços tão finos quanto os meus, escuto gritos e vejo uma criança menor que eu na beira da praia, está gritando por ajuda apontando em direção ao outro no mar. Estou correndo e em um segundo minha pele entra em contato com a água sagada, meu corpo reclama pelo frio, me movo rápido como me foi ensinado. Quem estava se afogando era um garotinho com os olhos verdes, estava vermelho pelo esforço, estávamos longe da costa. Minhas mãos estão em seu rosto, estou gritando para ele manter a calma.

— A correnteza está muito forte.— ele chora, me olhando aterrorizado.

— Vamos juntos.— minha voz é trêmula.— Não pode desistir, está bem? Não tenho força para carrega-lo sozinha.

O cenário muda, tenho 8 anos e o mesmo garoto está me ensinando a pescar com um Tridente que roubou de seu pai, estamos rindo, ele me abraça quando consigo um peixe grande. Ele me diz que sou sua melhor amiga, prometemos nunca nos deixar. Ele diz que quando tivermos idade vai me beijar igual seu pai beija sua mãe, eu fico constrangida e corro para dentro de casa. Dias se passam, estamos deitados na areia, fugimos de casa, o céu está estrelado, o garoto segura minha mão e chora dizendo que se mudará para a cidade. Seu pai o inscreveu como Carreirista, não está conseguindo alimentar todos os seus filhos, precisa da comissão que ele ganhará, ele diz que está com medo, eu o abraço.

— Eu nunca vou deixar de ser seu melhor amigo.— me promete.

— Vai me enviar cartas? — minha voz é insegura.

— Sempre que eu puder.

Estou de volta ao trem, sinto minha garganta apertar com todas às memórias, minha mão está na maçaneta mas não abro a porta, preciso me acalmar. Estava tão preocupada em ser escolhida, em ter que deixar minha família que nem ao menos me lembrei de Finnick, que ele estaria aqui, que tinha ganhado os jogos, que seria meu mentor.

Não penso nele a tanto tempo, sempre evito olhar a televisão quando ele dá entrevistas, uma magoa antiga e boba ainda está em meu peito.

Finalmente entro na sala e o som dos meus passos faz as cinco pessoas me olharem, por um segundo esqueci como se anda, tento me recompor abrindo um sorriso curto. Não olho na direção dele, em vem disso reparo no outro garoto jovem, o que não prestei atenção nem mesmo em seu nome no dia anterior. Ele parece tão assustado quanto eu, seu ombro está curvado em uma má postura e seu prato de comida intocado. Suas feições não são delicadas, sua pele é bronzeada, seu cabelo escuro e encaracolado, seus olhos tão pretos quanto carvão, não consigo reconhecer, nunca o vi antes.

— Junte-se a nós criança. — a voz da mulher ao lado dele me tira do transe. A observo por pouquíssimos segundos para finalmente reconhece-la. Seu nome é Fenty Dellacher, é uma das estilistas do Distrito 4, tem por volta dos 30 anos de idade, imagino que seja minha estilista. A responsável por me deixar bonita.

Meus pés se movem e em segundos estou sentada na mesa, um pouco admirada com o banquete de tantas variedades, há comidas que nem mesmo vi antes, pães de todos os tipos, jarras com líquidos coloridos, bolos de milhares de coberturas, pequenas porções com frios, e outras milhares de coisas que só nós 6 não daríamos conta. Estão todos em silêncio, me encarando, sinto meu rosto esquentar e mantenho o olhar baixo.

— Você não vai vomitar novamente, não é? — o outro estilista pergunta e dá uma risadinha ácida. Ele é Dalence, é muito mais velho pessoalmente do que pela televisão, posso enxergar suas linhas de expressão acentuadas a mais de 100 metros, não gosto dele.

— Não me sinto enjoada, obrigada por perguntar. — respondo seca.

Me sirvo, ignorando como ainda me encaram, tento não me intimidar, nada que eu faça ali será importante, em algumas semanas estarei morta, ou serei uma vitoriosa, e então esse povo esnobe da Capital terá que me engolir.

Com o tempo escuto a mesa voltar ao normal, estão conversando entre si, sem incluir eu ou o garoto azarado. Todos com exceção de Finnick, quando ergo o olhar pego o me encarando, paralisado, suas pupilas estão dilatas, reparo em como seu cabelo perdeu o tom fraco de cobre e agora se assemelha a um loiro escuro, sei que ele se lembra de mim, se não reconheceu antes pelo nome, me reconheceu agora pelo meu rosto. 

— Ela não tem vergonha de comer, você não precisa ter também. — Fenty diz para o outro Tributo que ainda não tocou em seu prato. — Lembre-se que precisa estar forte para os Jogos.

Desvio meu olhar de Finnick, mas percebo outra pessoa me olhando tão fixamente que me assusto um pouco. Mags, vencedora da 11º edição dos Jogos Vorazes, a mulher que minha mãe sussurrou em suas últimas palavras para eu conversar. Como eu falarei com ela é um enigma ainda, já que ela é muda. Ela finalmente percebe que estou olhando e abre um sorriso doce, que eu prontamente retribuo.

Os mentores logo começam a falar como será nossas semanas, ou melhor, Finnick está falando e traduzindo os sinais que Mags fala, explicando sempre o que ela quer dizer, observo a dinâmica deles e como os dois parecem se entender.

Ele explica que assim que chegarmos seremos designados para nossa equipe de arrumação, onde nos deixarão belos ao estilo da capital, ele faz piadinhas que arranca risadas dos estilistas, percebo o quanto ele é querido. Seremos colocados nas carruagens para o desfile, ele fala o quão importante é causar boa impressão, é o momento que precisaremos roubar atenção do público. Finnick diz que então teremos o treinamento com os outros tributos, onde é importante se destacar, mas não tanto para não virar um alvo, ele diz que os outros Distritos Carreiristas provavelmente tentarão formar aliança, indica não aceitarmos. Fala que nosso treinamento com os mentores e Lark será individual assim não saberemos as estratégias um do outro. E mais um milhão de coisas que tento memorizar.

70° edição dos Jogos Vorazes Onde histórias criam vida. Descubra agora