A mulher mais forte e destemida que conheço está em prantos, ela não consegue falar, não diz nada. Seus dedos tocam meu rosto, trêmulos, com tanto carinho que choro também. Estou em seus braços e estamos ajoelhadas no chão, inspiro seu cheiro e o memorizo, guardando no fundo da minha mente o inconfundível cheiro de lavanda e jasmins. É o cheiro de seus sabonetes caros que ela quase nunca abre mão, às vezes trabalhando o triplo para consegui-lo. Ela não vai ter mais esse cheiro porque eu não trabalharei mais e não a ajudarei com as despesas, terá que cuidar de Zyan sozinha, terá que explicar para ele sobre os Jogos, contar a verdade e contar que nunca voltarei.— Meu bebê, eu sinto tanto. — sua voz é embargada enquanto ela emoldura meu rosto entre suas mãos e me encara com amor.
— A senhora precisa ser forte, mamãe, por Zyan.— seguro seu pulso que ainda está segurando meu rosto, ela assente e me beija na testa, sussurra que me ama, me dá a ordem de vencer esses jogos, diz que estará comigo o tempo todo.
Minha mãe se afasta alguns centímetros e leva as duas mãos até o pescoço, ela retira o colar com linhas pretas, que nunca sai de perto dela, e põe em mim.
— Era do seu pai.— ela funda.— Para dar sorte.
Deixo que ela coloque a corrente de linha com pingente de anzol em meu pescoço, não tem muito significado para mim mas sei que há para ela. A porta é aberta e um pacificador avisa que o tempo está esgotado, minha mãe me abraça e sussurra em meu ouvido, me faz prometer que a obedecerei e então sai pela porta rapidamente. Escuto o choro assustado do meu irmão e meu coração se parte em um milhão de pedaços. Maven é a segunda a entrar correndo, ela pula em cima de mim e chora como uma criança.
— Você não pode desistir, está me ouvindo!? Você entrou nessa merda então vai vencer essa porra, Malia! — ela está gritando enquanto eu assinto várias vezes como um soldado.— Você sabe pescar com Tridente, sabe fazer redes a partir de algas, sabe montar armadilhas, entende melhor do que ninguém sobre venenos! Não há outra alternativa, você vai ganhar!
Estou um pouco surda demais e chorosa além do limite, conversamos mais um pouco e então ela é mandada embora. Não estou pronta para o último que atravessa à porta, para ver seus passinhos amedrontados e os olhinhos azuis molhados e assustados. Zyan entra com a mão na boca, como faz quando está com medo, assim que me vê corre em minha direção e pula em meu colo. Seus bracinhos estão envolta do meu pescoço e ele está chorando mesmo sem entender o que acontece.
— Estou com medo, não gosto dos caras de branco, eles gritaram comigo.— ele chora baixinho.
— Eles são maus igual as galinhas do nosso vizinho, não é? — meu irmão assente, fazendo biquinho, mas se acalmando com a comparação.— Preste atenção, a maninha vai precisar passar um tempinho longe de você e da mamãe, uns dias fora... quero que cuide da mamãe se ela chorar e sentir minha falta... fique com ela, faça companhia, seja você mesmo mas não a deixe muito tempo sozinha.
— Mas e se eu sentir sua falta? Quem vai cuidar de mim? — ele está querendo chorar novamente.
— Posso te contar um segredo, promete que vai guarda-lo? — o vejo assentir várias vezes, os olhos ansiosos, ele quase não consegue se controlar.— Vou deixar você usar minha superforça, ela me faz ficar quase mágica, quando estou com ela não sinto tristeza, nem medo, nem nada.
Os olhos de Zyan brilham tanto que ele já está de pé acrescentando milhões de perguntas, não tenho tempo para tantas, então o corto e invento qualquer baboseira sobre pular 21 ondas por 7 dias e dormi cedo por 2 semanas e ele acredita. O abraço apertado nos poucos minutos que sobram, não o deixo ver que estou chorando porque se não ele ficaria confuso. Quando o pacificador chega, demoro alguns segundos a mais para solta-lo. Zyan me deseja sorte e boa viagem, beija minha bochecha e escapa dos meus braços, talvez para sempre.
Estou sendo levada em direção ao trem, não conheço o caminho, nunca estive ali, mas não presto atenção em nenhum detalhe. Minha cabeça é um turbilhão de pensamentos e fragmentos de lembranças que me deixam zonza, estou apática sendo guiada como uma boneca de pano, minhas pernas trotando em cada passo.
Sou levada para um quarto, a porta é fechada, uma mulher faz gestos para que eu tome um banho, ela não fala, move os lábios de um jeito estranho, sua boca se entreabre, não tem língua, uma avox. Estou arrancando minhas roupas pela cabeça e jogando em qualquer canto, tiro tudo com exceção do colar, não me importo de estar nua, ela já deve ter visto milhares outros Tributos assim. Meu banho é tão longo quanto esperado, uma muda de roupa, um conjunto de calça e blusa estão sobre o tecido fino do lençol.
Fico sozinha, meus pensamentos me consomem, estou na escuridão, durmo e acordo milhares de vezes, hora estou em meu quarto, hora a voz de Lark anuncia meu nome, estou na cama, no trem em movimento, a janela mostra que é noite. Lembro do que me foi sussurrado, das coisas que prometi, coisas que talvez não consiga cumprir. Meu corpo se curva na cama e me sinto zonza, está tudo revirando, minha cabeça, meu estômago. Estou ofegando enquanto minha boca saliva. Há alguém falando, a voz me dá enjoo, gemo tentando avisar que não estou bem.
— Você precisa vir jantar e conhecer seus mentores... os avox não estão conseguindo chamar sua atenção.
É Lark, ele mudou a roupa, a peruca colorida, agora são cachos cor verde-mar, cor dos olhos da minha mãe. Estou curvada novamente, dessa vez todo o conteúdo do meu estômago sai para fora, em cima do representante, não consigo parar enquanto ele grita em choque. Sua roupa antes azulada agora é uma mistura marrom, é nojento, vomito mais. Há pessoas entrando no quarto, não as distingo com a visão embaçada pelas lágrimas.
Alguém sobe na cama, o peso muda, uma mão pesada segura meu cabelo e massageia minhas costas. Lark se foi, mas ainda há muita gente. Caio com a cabeça em algo macio, uma coxa grossa, meus olhos se fecham, estou gemendo pela dor em meu estômago, a confusão sumiu, tudo é silencioso.
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70° edição dos Jogos Vorazes
Hayran KurguPerto de completar seus tão esperados 19 anos, Malia Dareaux estava contente por ser seu último ano sendo obrigada a escrever seu nome para ser sorteada como Tributo para os Jogos Vorazes. Ela sabia que depois desse fatídico dia, não teria mais que...