70. Fugir de si mesmo

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Música Recomendada: Join Me in Death, HIM

Naquela noite, Dead apareceu em sua glória impactante. Os olhos de seus ouvintes arregalaram-se e as cabeças balançaram-se. Longas madeixas subiam e desciam numa dança confusa de fios loiros, pretos, ruivos e castanhos.

Alguns puxavam a estaca de madeira que empalava uma cabeça de porco, que já fedia a carne podre. Dessa vez, o açougueiro esquecera de limpar o sangue espesso do animal rosado.

Imitando os rapazes bêbados na plateia, Dead balançava a sua cabeça. Os fios loiros e brilhantes voavam livremente... mais livre que o próprio espírito de Per. Uma confusão dourada e vermelha.

A pele do antebraço estava exposta, já que Dead puxou a manga comprida de sua camisa da banda Sarcófago. A superfície tão lisa, salvo alguns pelos loiros, a pele tão branca agora pintada com o líquido vermelho e aberturas violentas.

Algumas memórias nunca vão embora

E elas estarão para sempre aqui

Dead soltou o microfone pela última vez e balançou a cabeça, esperando pelo encerramento do som harmonioso entre a guitarra, baixo e bateria.

Lá estava Øystein, encarnando um personagem que adoraria ser real. Euronymous.

Dead...

Dead agora adormece na pele de Per, que observa as paisagens passarem lentamente através da janela enquanto lembra do concerto. Jørn está silencioso, concentrado na estrada ainda encharcada de neve semi derretida.

Choveu por alguns minutos durante o dia, indicando a Primavera que avança em grandes passos.

Ele está exausto, sua garganta está seca e começa a arranhar. Sequer bebeu água depois de gritar tanto no concerto. Mas seus pensamentos o prejudicam mais.

É sempre assim.

Os pensamentos de um homem podem engrandecê-lo ou torná-lo miserável.

As imagens que preenchem seus pensamentos pertencem a Lúthien Quisling Glykos.

Seu desapontamento, seu desprezo, seus olhos tempestuosos prontos para julgar.

Ele se machucou naquela noite... propositadamente.

Mas há outra coisa que insiste em aparecer em sua mente.

A voz doce da moça cantando para todos, seu nervosismo. Como Per gostaria de estar presente no tal festival, de vê-la e confortá-la naquele momento. Faria de tudo para que ela se sentisse bem e cantasse sem a ansiedade de ver tantas pessoas diante dela.

Per nunca teve a experiência de se sentir nervoso num palco. Ele jamais foi tímido enquanto cantava suas músicas misteriosas. Isso porque ele apenas encarnava um personagem, convenceu a si mesmo que quem sempre canta é uma versão melhorada de si. Um homem sem medos, performático, seguro.

Mas ao mesmo tempo que Dead é um homem sem medos, Per se mistura a sua sombriedade, ao ódio e ao fascínio pela morte.

Uma mistura perigosa. Uma pessoa não pode ficar muito exposta à morte, ao que é negativo. E muito menos, ter fascínio por isso.

Eu sou inevitável, mas posso dizer que não tem como atribuir conceitos positivos a mim.

Sou um intermediador, que desde que o mundo é mundo, todos me odeiam, tendo naturalmente o instinto de fuga da morte.

Os que me esperam ansiosamente ou se interessam pelos mistérios, tendem a se autodestruirem aos poucos.

Até não haver mais esperança naquela dor aguda e constante.

O Violinista no JardimOnde histórias criam vida. Descubra agora