85. Cortina de Fumaça

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Mesmo com uma noite que ela consideraria perfeita, seus sonhos foram agitados, desconexos, vívidos e assustadores.

Mas ao invés de acordar como uma enorme barata, seguindo uma narrativa Kafkiana, Lúthien acordou bem pior: como um ser humano.

Sua cabeça pesa, seus olhos lacrimejam e a fraqueza domina seu corpo depois de um sono extremamente pesado.Os flashes em sua mente da noite anterior quase são confundidos com um sonho maravilhoso, mas apagado. Ela quase se questiona se aquele encontro com Per fora real.

Mas sua roupa e o cheiro deixado pelo rapaz aliviam sua memória. Ela sorri.

― Lúthien, hora de acordar. ― ela coça o ouvido ao escutar a voz da mãe através da porta do quarto. Não sabia que Melina chegaria hoje e nem naquele horário, mas se alegra ao saber que seus irmãos mais novos também estão em casa.

― Já estou indo!

Não que ela tivesse obrigação de acordar cedo, está de férias, afinal. Mas ela resolveu levantar-se antes que sua mãe brigasse, pois o tom de sua voz parece estressado.

Ao terminar de escovar os dentes, ela sai do quarto e encontra a casa dos seus tios vazia.

A luz forte das 11 horas da manhã machuca seus olhos como mosquitos entrando no globo ocular, mas ela está com muita vontade de comer e ignora os olhos lacrimejantes e a cara mal humorada de sua mãe.

Pela camiseta xadrez a saia social, sua mãe acabara de chegar.

Ela também sentiu a energia ruim exalando da mulher para todos os cantos.

― Cadê Andreas e Alexandros? ― ela questiona enquanto frita algumas fatias de bacon com ovo.

― Saíram com o seu pai. ― Melina responde. Ela lê uma revista, parecendo alheia.

― E para onde foram?

― Não sei.

Lúthien conhece bem a mãe. Sabe até o tom de voz que indica se está tudo bem ou se vai ter que aguentar um esporro.

Naquele momento, ela nem imagina o motivo. Claro, sua mente está enevoada e o corpo parece estar flutuando. Ela está usando toda a sua capacidade mental para preparar seu café da manhã.

Assim que se senta, põe uma fatia de bacon e ouve a voz fria de Melina finalmente se manifestar.

― A última vez que vi aquele homem com você, foi num aeroporto, Lúthien!

As mãos cruzadas fortemente, com veias azuladas aparentes, um olhar vermelho e lábios cerrados.

― Ah, mãe... ― Lúthien tem vontade de jogar todo o bacon fora e ir para o banheiro.

Na hora do nervosismo, qualquer bolo alimentar se transforma em água.

― Não, agora você vai me ouvir...

― Pelo amor de Deus, eu estou comendo! ― ela interrompe a mãe.

― Não, Lúthien! Não tem condições. ― a voz fria, arrastada e dita com força amedronta a garota, que sente seu coração bater mais forte, a pele esfriar, o suor descer de sua testa e a barriga doer tanto ― O que você foi fazer com aquele homem, Lúthien? Tantas e tantas vezes eu já te diz para não se aproximar dele. Quantas vezes eu já mandei você encontrar um rumo nessa sua vida, Lúthien?

Cada frase, uma ênfase tão assustadora. Lúthien acha que vai desmaiar, sua pressão cai.

― O pai lhe contou?

― É óbvio que contou, Lúthien. Que absurdo! Por que você faz isso comigo?

Quisling tem que se controlar muito para não mostrar o quanto está se tremendo, é muito orgulhosa para esboçar a mínima reação de medo.

― Ah, mãe, licença. ― Lúthien larga a colher no prato de ovos com bacon. Sua rudeza ecoou pela casa solitária, enquanto sua mãe levantou-se.

Melina é uma mulher firme, elegante e controlada. Até quando está furiosa e quer levantar a voz, ela impõe respeito e assusta. O problema é que sua filha sente algo a mais que medo.

Um pavor.

Uma agonia que se repete. Como um trauma revivido várias vezes no mesmo minuto.

― Não, agora você vai ter que me ouvir. Você vai ter que me ouvir! ― Melina se levanta e segue a filha até o quarto ― O que estava fazendo com aquele homem ontem?

― O pai não lhe contou isso? ― Melina não responde a pergunta, obrigando Lúthien a falar. ― Fomos a Bryggen.

Lúthien se senta na cama ainda desarrumada em que dormiu durante a noite. Ela põe o travesseiro sobre sua perna desnuda numa tentativa inconsciente de proteção.

― Fazer o quê?

― A gente foi comer bacalhau.

Lúthien não tem muitos motivos para mentir, afinal, só foram a uma igreja e se beijaram apaixonadamente até voltarem para casa às dez da noite. Mas tal encontro não é muito tradicional, e um pouco desacreditável.

Qual mãe acreditaria que a filha foi à uma igreja velha com um namoradinho? Namoradinho este que iria fugir com sua filha semanas antes.

Melina cruza os braços e observa Lúthien.

Lúthien é de novo uma criança. Subjugada, medrosa a cada palavra da mãe, indefesa. Sua barriga dói mais. Sua vergonha aumenta.

Ela não quer gritar ou jogar as coisas no chão. A garota não está com raiva. Ela só quer sair dali, ir para bem longe e esquecer de tudo. Ela só quer um pouco de dignidade. Se sente vítima de tudo.

― Lúthien, a última vez que vi você dois juntos, estavam se preparando para fugir. ― Sua mãe repete.

― E a senhora deu um tapa na cara de Pelle.

― Eu dei sim, porque eu era uma mãe desesperada e eu me desequilibrei, não posso?

O silêncio impera naqueles breves segundos depois da pergunta de Melina.

― A gente aconselha, ensina, mostra o caminho bom... ― Melina anda de um lado pro outro em seus sapatos de couro, que faz um ruído estranho no tapete ― e aí acontece isso. Lúthien, eu não deveria ter te dado tanta liberdade.

Lúthien não quer chorar. Ela não está triste.

― Mãe...

― Você realmente enxerga aquele homem? As roupas deles, o modo de agir, as companhias dele? Eu não te criei pra isso!

Lúthien não quer explodir. Ela não está no limite.

― Você pensa muito bem no que está fazendo, hein. ― ela para de andar e aponta o dedo em riste para a filha ― Porque você já falhou uma vez e está fazendo de tudo para falhar de novo.

Lúthien não quer gritar com sua mãe.

Ela só quer virar fumaça.

― Quando Angeliki morreu, eu achei que você seguiria o exemplo, eu achei que você cresceria com o legado dela. Eu achei que você teria juízo! Mas olha o que aconteceu com você. ― Melina tem olhos lacrimejantes agora.

― Queria que eu fosse Angeliki? Queria que eu fosse a substituta dela depois de sua morte?

― Ela morreu tentando salvar você! Ela morreu por sua causa... ― Lúthien não quis mais ouvir o resto.

Ela se levanta e passa por sua mãe numa velocidade que a mulher é incapaz de alcançar. Abrindo a porta com tanta brutalidade, ela machuca sua mão.

A garota, apenas com uma camisola preta de seda e uma pantufa, corre pela vizinhança. Para bem longe da mãe. 

O Violinista no JardimOnde histórias criam vida. Descubra agora