46. Resquício de Defunto

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― Per! ― o ruivo grita.

Per!

Per!

Per!

Aqueles chamados são bem familiares para Per Yngve Ohlin. E até mesmo correndo há mais de cinco minutos ele é capaz de lembrar-se.

― Droga, Pelle! – disse o garoto atrás dele ― Já está muito velho para agir dessa maneira.

Ele quer continuar a correr, mas há um vilão para impedi-lo: seu condicionamento físico. A respiração fraca, os pulmões queimando e as pernas doloridas. Não é muito recomendado correr tanto sem preparo, principalmente se não passa dos 53 quilos.

Per pára inclinado, com as mãos nos joelhos. Respirando fundo e devagar, assim como seu pai ensinou.

Havia uma deusa. Bom, talvez ainda há.

Chamavam-na de Despina. Ela é considerada a deusa do Inverno.

Sua história é um pouco amarga. Na verdade, muito. A deusa do Inverno poderia ser fria e calculista, mas não passa de um ser orgulhoso e mesquinho.

Ela é filha de Deméter, a deusa da Agricultura; logo, irmã de Perséfone, a deusa da Primavera. Já dá para perceber que Despina é como a ovelha negra da família.

Não a culpe. Na verdade, ela é tão amargurada pelo abandono da sua própria mãe, tão invejosa por sua irmã.

De alguma forma, ela queria ser superior. Queria provar a si mesma e aos outros deuses que sempre desprezara a família. Assim, ela passou a destruir todos os feitos que sua mãe e irmã faziam.

Ela destrói as cores vibrantes da primavera, o calor do verão, as boas colheitas, a beleza e inocência dessas estações. E assim, nasce uma estação fria e cruel.

Per não pensa nessa história, de fato. Ele apenas contempla os feitos de Despina: a grama destruída, o frio que atinge sua pele descoberta, as árvores quase sem vida, a escuridão, o silêncio. A água fria que presenteia a terra é uma exceção, diga-se de passagem.

Cruel outono.

O rapaz louro só consegue ver as lápides por conta das luzes fracas dos pequenos postes ao redor do cemitério.

Ele ri.

A chuva encharca seu cabelo longo, suas roupas escuras e, claro, o chão em que ele está sentado.

Como deve ser estar debaixo da terra? Ele se pergunta. Sentem a água?

Ele estende a mão e toca na lápide de um defunto qualquer. Fica lá por algum tempo, até seu cansaço cessar.

O seu amigo provavelmente está bem longe àquela altura, pois nem os chamados Per pôde ouvir.

Ele olha a lápide mais de perto e nela está escrito "Steffan Coppola".

Ótimo, um italiano, pensou. Ele suspira e deita-se sobre o chão do cemitério.

Per não queria estar ali, mas, ao mesmo tempo, ele sente que o deve.

Do pó viemos, para o pó retornaremos.

Ele não gosta e nem se identifica com religiões, muito menos com o cristianismo, mas adora a frase. É como se reconhecesse a insignificância da humanidade, a trivialidade, a liquidez da vida, ao fato de que o humano é uma coisa tão pequena quanto um grão de terra.

O garoto se sente pequeno ali, sob a imensidão daquele céu cinzento. Se sente pequeno. Tão pequeno quanto ele realmente é.

Per fecha os olhos assim que a chuva aumenta. Pensamentos desconexos passam por sua cabeça e o medo preenchendo o seu coração. Ele tem medo, é sim.

O Violinista no JardimOnde histórias criam vida. Descubra agora