capítulo sessenta e oito: defeito

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Carol

Toda vez que eu penso em tudo que vivi com o Yuri, das coisas boas até as ruins, por mais conturbado que fosse naquela época, eu não mudaria nada. Exceto o fato do nosso filho ter morrido. Não gosto de pensar nos momentos específicos que aconteceram no ano que estávamos juntos, nos ajeitando, muito menos quando perdi o meu filho, parece que é uma dor que sempre vai estar lá, não importa o que aconteça.

E, mesmo que aos poucos, aprendi a lidar com isso, mas talvez seja um problema pro Ruan. Eu não penso em ter filhos desde quando perdi o bebê, antes dele nunca pensei, imagine depois. Tenho medo da reação dele sempre que falamos sobre isso, não vou mentir dizendo que não me importo com a opinião do Perigo, porque eu ligo sim, mesmo que seja óbvio o fato dele sempre ficar chateado.

De alguma forma isso desperta um sentimento muito ruim em mim, como se, mesmo que capaz de ter outro filho, eu me sinta exatamente desse jeito: incapaz. Não por não poder ter, mas por não querer ter e eu vejo nos olhos dele o quanto ele quer tudo isso comigo, todas essas metas...

Mas eu também sei que isso tudo é muito complicado pra nós dois. Se eu tivesse um filho com ele, a vida dele não mudaria tanto quanto a minha, porque, acredito eu que o impacto de uma criança é sempre maior na mãe, por mais maluco que seja. O peso das palavras "não quero ter filhos” é sempre maior quando se sai da boca de uma mulher, nunca de um homem, porque é normal eles não quererem, não é normal se uma mulher não quer.

E tendo um filho ou não, isso não anula nossa história e não reduz ela à isso, isso que falta ele entender. Não precisamos fazer tudo com essa pressa toda, tudo acontece conforme tem que acontecer e esse assunto é delicado pra mim de um jeito que ele não entende ou não quer entender mesmo.

Realmente nunca foi meu sonho casar e ter uma família, mas, se eu tenho hoje, sou feliz com que eu sou, não pode ter sido um sonho meu, mas não significa que eu não esteja realizada por isso. Eu não quero mesmo passar por cima dos meus limites, ultrapassar todos os meus medos pra somente agradar ele, gravidez é algo que tem que ser legal pros dois, não só pra um.

Eu sei que o Ruan ama o Pedro com tudo que ele é, sei mesmo, mas uma coisa que eu percebo é que a vida dele mal mudou com a chegada do babycria, minha amiga que vive passando por várias coisas e ela nunca joga ele pros peito do Ruan, só dá um jeito de abraçar todo o mundo com uma mão só.

Ele passa mais tempo na rua, trabalhando ou comigo, tira um tempo pra ficar com o Pedrinho, mas noventa e oito por cento das vezes é ela que fica, sempre! Os outros dois por cento é um pouco com ele, os melhores momentos é ela quem vê, quem sente, quem grava... Até o Igor passa mais tempo com o babycria, o padrasto.

Então, o fato do Rafael e até o Igor ter falado várias vezes que não queria filhos era sempre uma coisa de boa, mas uma mulher falando é outro nível, porque, aos olhos de muitos por aí, eu nasci pra gerar filhos, eu tenho a obrigação de ter só por ser mulher ou algo assim.

Semicerrei os olhos na hora, sentindo um clarão tomar toda minha visão, ardendo minha vista, embaçando a imagem de uma pessoa parada à minha frente, em pé na ponta da cama. Depois de longos minutos, vi o Ruan parado de braços cruzados, sem camisa, com a expressão séria, as veias saltadas por toda extensão das suas mãos que subiam até os braços, a bochecha levemente avermelhada por causa do calor.

Seus olhos escuros analisa toda a posição do meu corpo. Yuri dormindo quase caindo da cama mesmo com a luz ligada e eu, bom, deitada de lado, apoiando minha cabeça nas minhas mãos. Sinto meu corpo ficar mais quente ainda com seus olhos queimando sobre mim. Ele tá puto por alguma coisa.

Perigo: Vamo voltar pra casa.- Arqueio a sobrancelha quando escuto sua voz séria até demais e ríspida chegar até meus ouvidos. Solto uma longa respiração que eu nem sabia que tava segurando, tentando encarar seus olhos e saber o que tava acontecendo, mas ele só fugia de mim.- Agora.

Não respondi. Levantei com cuidado, andando até sua direção, desligando a luz no interruptor ao lado do corpo dele. Olhei diretamente nos olhos do Ruan que estavam mais escuros que o normal, sinalizando que algo aconteceu e ele não queria me falar. Empurrei seu corpo com delicadeza, vendo que ele andou um pouco pra trás, saindo do quarto e eu fechei a porta atrás de mim sem fazer barulho pra não acordar o Yuri.

Carol: O que aconteceu? - Parei na sua frente, encarando seus olhos e cruzando os braços do mesmo jeito que ele. E, então, depois de longos minutos apenas me encarando, ele negou com a cabeça, me fazendo bufar frustada e sem paciência.- O que aconteceu, Ruan?

Repeti, mas agora mais firmeza, parecendo até que tô falando com uma criança. Ele arqueou a sobrancelha, desfazendo os braços cruzados, subindo a mão até a extensão do pescoço, passando a mão por ali. Depois desceu a mão pro rosto, esfregando por alguns segundos, até bater com os olhos aos meus. É exatamente isso que ele faz quando não quer falar nada.

Carol: Não vou insistir mais em nada, fala quando quiser. Mas eu achei que somos adultos o suficiente pra conversamos sobre o que nos incomoda - Falei baixo, sentindo meu cabelo desprender quando o vento forte bateu no meu rosto.- Vou arrumar minhas coisas.

Eu sei que ele é difícil de lidar e sei que ele muda de humor toda hora. Ele as vezes é todo o contrário de mim, chega a me dar raiva uma pessoa que guarda tanta coisa pra si mesmo e fecha a cara pra todos como se eu tivesse culpa. Talvez eu tivesse feito algo que não agradou ele, mas não é mais fácil falar onde eu errei?

Perigo: Não tô afim de discutir contigo por nada disso.- Levantei as sobrancelhas, sem entender o que ele quis dizer com isso e eu iria perguntar. Mas nem deu tempo, Ruan me deu as costas e saiu sem falar absolutamente nada depois disso, o que me deixou chateada, mas não surpresa.

Não tô com raiva dele, muito pelo contrário, ele vai dizer quando for confortável. Prefiro nem conversar quando ele estiver com raiva porque só gera brigas e mágoas. Mas não o que você fala, mas sim a maneira que você diz, então é complicado nisso e sempre foi. Ruan pode não ser ignorante na mensagem que ele tá tentando passar, mas a maneira que ele fala é totalmente grossa e isso incomoda muitas pessoas além de mim.

Respirei fundo, sentindo todo meu corpo arrepiar com o vento frio passando por todo meu rosto, mexendo mais o meu cabelo pros lados. Eu queria muito saber o que se passa na cabeça do Ruan e por qual motivo ele muda de humor tão rápido, não dá pra acompanhar desse jeito.

Eu sabia como ele era até mesmo de estarmos sentindo algo um pelo outro, aceitei estar aqui mesmo com todos os motivos pra não estar, mas isso não significa que eu tenho que aguentar tudo calada, tô aqui porque amo ele. Ruan já mudou pra caralho ao meu ver, mas um dos maiores defeitos dele que ficou até hoje é o fato dele estar incomodado com alguma coisa e agir dessa maneira.

Não dá pra mim desde o momento que começar a nos magoar, então, se for pra ser assim, eu vou ter uma conversa muito séria com ele e quero que ele me diga o que eu faço que o incomoda desse jeito todo.

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