Capítulo Sessenta e quatro

221 38 1
                                    

|Catherine|

Desperto aos poucos, sentindo o frio da madrugada deixar meu corpo trêmulo e fraco, embora, para minha surpresa, o veludo macio da capa de Selin ainda me aqueça. Ela a envolveu sobre mim como uma última proteção contra a noite. Abro os olhos devagar, piscando ao ver os raios do sol que se infiltram entre as árvores da floresta densa. O corpo dói, um peso latejante e febril. Tento me mover, mas cada movimento me lembra do quanto estou cansada e debilitada. A febre ainda arde em mim, mas a ideia de ficarmos paradas, vulneráveis a Henry, me impulsiona a seguir em frente.

Olho para o lado e vejo Selin, encostada em uma árvore, as costas arqueadas em um ângulo desconfortável. Ela dormiu em guarda, exausta. Seu rosto está pálido, as olheiras quase tão escuras quanto a terra embaixo de nós. Um aperto toma conta do meu peito; depois de tudo o que houve entre nós, nunca imaginei que chegaríamos a esse ponto, lutando juntas, ela sacrificando seu conforto, talvez até sua segurança, por mim. Estico a mão, tocando-lhe o ombro com suavidade.

– Selin – murmuro, a voz fraca, mas ansiosa para que ela acorde.

Ela desperta sobressaltada, os olhos azuis arregalados, confusos, e se retrai defensivamente, como se temesse ser atacada. Leva um momento até que perceba que sou eu, e não alguma ameaça.

– Sou eu... – digo, tentando soar tranquilizadora.

Ela pisca, os olhos ajustando-se à luz da manhã, e relaxa ligeiramente.

– Acabei adormecendo – murmura, claramente aborrecida consigo mesma. – O cansaço... ele... me venceu.

– Você fez mais do que o necessário – tento confortá-la.

Minha gratidão é genuína; ela tem sido a minha força. Mas, ao mesmo tempo, sei que não posso permitir que ela continue a carregar o fardo sozinha.

– Vamos em frente – ela diz, sem rodeios, tentando retomar sua postura. – Suba nas minhas costas novamente, Catherine.

Eu balanço a cabeça, determinada a não ser um peso.

– Já me sinto melhor. Não posso permitir que você faça isso de novo. Precisa de forças tanto quanto eu.

Ela me encara, o semblante entre o obstinado e o exausto. Discutimos por um tempo, mas me mantenho firme. Finalmente, ela cede com um suspiro, e começamos a caminhar, cada uma suportando suas próprias dores, unidas apenas pelo desespero e pela necessidade de sobreviver. Enquanto avançamos por entre as árvores retorcidas e o solo irregular, o silêncio se torna quase insuportável. Para desviar a mente do medo e da exaustão, eu lhe faço uma pergunta sincera que não sai da minha cabeça.

– Selin, por que está me ajudando?

Ela hesita, o olhar perdido nas pedras e raízes. Ao me ajudar a descer uma vala íngreme, ela finalmente fala, a voz baixa e pensativa.

– Foi um acaso. Um encontro... não planejado. Mas não poderia ficar parada assistindo uma crueldade ser feita. Mesmo que não sejamos... – ela pausa, buscando as palavras corretas para a situação. – ...melhores amigas.

Seus olhos evitam os meus, e eu percebo a profundidade do que ela carrega, uma dor que vai além de nossa atual situação.

–Ninguém merece passar por isso – ela continua, falando mais para si mesma do que para mim. – Eu sei como é... não conseguir se defender... de um homem cruel, de um homem... que faz você se sentir fraca.

Eu vejo, então, a vulnerabilidade que ela tenta esconder. É como se, em suas palavras, reconhecêssemos uma dor comum, um sofrimento que ambas conhecemos de maneiras diferentes. Quero abraçá-la, mas a barreira invisível entre nós é grande demais para um passo como esse. Ela se vira para mim, com um sorriso sarcástico, uma fachada frágil que esconde o que realmente sente.

–Mas não se preocupe comigo, Catherine. Eu não tenho nenhum plano secreto de reconquistar Frederick, se é isso que passa pela sua cabeça. Eu nunca o amei de verdade.

Fico surpresa com a declaração, e ela sorri, amargamente.

–Tudo o que eu queria era cumprir o meu papel, casar-me bem, com alguém da alta nobreza, e honrar o nome da minha família. Mas parece que até isso eu sou... incapaz de fazer.

Ela ri, mas o riso soa falso, doloroso. E eu consigo ver, nos olhos dela, uma sombra de tristeza que nunca percebi antes.

– E isso realmente seria o suficiente para você? Casar com alguém que não ama?

Ela demora a responder, como se não tivesse certeza. Seus olhos vagam pelas árvores ao redor, e ela finalmente fala, a voz quase um sussurro.

–Sim. Ao menos... ao casar com um príncipe, eu poderia... – ela pausa, hesitante, o rosto enrubescendo levemente – ver quem eu realmente amo, ainda que de longe. Ele vive no castelo... Eu nunca poderia lhe dizer a verdade, mas... ele estaria sempre por perto, diante dos meus olhos.

Seu rosto se fecha rapidamente, e ela balança a cabeça, como se quisesse se livrar daquele pensamento.

–Mas nada disso importa agora –ela diz, com uma firmeza que soa mais forçada do que genuína. – Precisamos seguir em frente, e não ficar como duas velhas fofoqueiras perdendo tempo.

Eu apenas a observo em silêncio, surpresa com o que acabei de ouvir. Não sabia da intensidade dos sentimentos de Selin, nem do sacrifício que ela estava disposta a fazer, mesmo que isso significasse esconder seu amor para sempre. Agora, enquanto ela segue em frente, determinada, percebo o quanto de si ela esconde, quão pesada deve ser essa máscara de indiferença que ela sustenta todos os dias.

Caminhamos por um terreno íngreme e cheio de galhos caídos e pedras pontiagudas. O esforço físico e emocional me deixa esgotada, mas sei que preciso continuar, ainda que minhas forças estejam prestes a se esgotar. Cada passo dói, mas cada olhar para Selin me lembra que não estou sozinha, e que, de alguma forma, também devo ser sua força.

A floresta é densa, os sons de animais ecoam ao nosso redor, e, por um momento, temo que estejamos indo na direção errada. Tudo parece igual, todas as árvores, todos os arbustos, e a sensação de estarmos perdidas cresce a cada minuto. Mas não ouso confessar meu medo em voz alta. Em um momento de coragem, olho para Selin. Ela parece tão cansada quanto eu, mas há uma determinação inabalável em seus olhos. De algum modo, sei que ambas estamos lutando não apenas contra Henry, mas contra nossos próprios fantasmas, nossos próprios passados dolorosos e repletos de cicatrizes.

O silêncio volta a reinar entre nós, mas ele é diferente agora, menos opressor. É como se, de alguma forma, essa jornada compartilhada tivesse nos unido de um jeito que as palavras não poderiam explicar. Continuamos a caminhada, sem saber para onde vamos, guiadas apenas pela esperança de que uma saída eventualmente surgirá em meio à floresta interminável e assustadora. Cada passo é uma prova de resistência, e cada minuto é uma batalha para afastar o desespero. Perdidas e exaustas, seguimos em frente, unidas pela dor e pelo medo, mas também por algo que, mesmo em meio à escuridão e à incerteza, nos dá a esperança de uma luz no fim do túnel. 

Nós vamos escapar dessa... nós precisamos disso. 


🗡🗡🗡

Olá, filhos da Luz! Deixe sua estrelinha e comentário!

Olá, filhos da Luz! Deixe sua estrelinha e comentário!

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
A Sombra do Passado [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora