Capítulo III ● Youngjae

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As coisas mudaram de verdade no dia do meu aniversário de 11 anos, quando decidi que queria patinar no gelo, um ritual que eu fazia todos os anos com a minha mãe, mas que tinha evitado nos ultimos 4 anos porque ainda era doloroso demais. Meu pai nunca aprendeu a patinar, mas quando eu disse a ele, em uma tarde de segunda feira depois que cheguei da escola e ele do trabalho, que queria ir patinar no sábado do meu aniversário, ele não pensou duas vezes e apenas disse que me levaria, mesmo se estivesse chovendo, porque sabia que isso era importante para mim, e então nós fomos, ainda sem saber que isso mudaria nossas vidas para sempre.

Acordei bem cedo naquele dia, o dia em que tudo mudou, fiquei ansioso por ele o resto da semana inteira que se seguiu depois da segunda feira, mesmo que não tivesse demonstrado isso ao meu pai ou a qualquer outra pessoa que convivia ao meu redor, e de alguma forma meio estranha, eu acho que sabia que algo extraordinário aconteceria naquele dia, talvez fosse minha sensibilidade me avisando, ou então apenas o destino, mas eu apenas sabia.

Meu pai me levou de carro até o rinque de patinação no gelo que ficava no centro da cidade ao meio dia do sábado do dia 17 de setembro de 2007, estacionou na vigésima vaga do lado esquerdo do estacionamento principal, ao lado de uma moto e uma van, de uma forma meio torta que quase me fez bater a porta do passageiro na van na hora em que sai do carro. Ele cantarolava uma música e andava um pouco mais a minha frente, e eu, um pouco mais atrás, prestava total atenção no barulho ritmado de seus passos batendo no chão de cascalho do estacionamento.

Era assim que eu me guiava sempre que saia por ai com ele, eu não gostava de usar a bengala, e meu pai tampouco, por esse motivo, nós inventamos uma forma prática para que eu me locomovesse por ai sem precisar de sua ajuda e sem precisar da bengala. E é bem simples na verdade, ele sempre andava na minha frente, sendo o guia, e pisava com a bota adaptada, que era como um sapato de sapateado, só que mais descolado e bem maior, de uma forma meio forte no chão, e assim eu sabia onde e quando pisar, porque me movia pelo som. E eu realmente não sei se a técnica funciona com outras pessoas como eu, nunca testamos e é uma coisa meio que só nossa, mas o fato é que funcionava pra mim, e por causa disso eu me sentia bem mais livre quando estava na presença de meu pai.

Me lembro que tocava uma música de jazz clássico dentro do rinque no momento em que chegamos, algo meio refinado, que fazia com que eu me sentisse em um filme antigo de espiões, onde os agentes entram infiltrados em jantares chiques de magnatas ricos e dançam com mulheres bonitas que bebem bebidas caras em taças de cristal, o tipo de filme que meu pai ama assistir e que sempre me descreve detalhe por detalhe.

Hoje em dia eu imagino que aquela música seria algo que minha professora de artes, Sra. kim, ouviria, e gosto de tentar adivinhar como ela se chamava. Nunca encontrei nada sobre a música na internet, não é fácil descrever músicas sem letra para o google, ele é inteligente, mas nem tanto assim, e quando pergunto ao meu pai, nos dias de hoje, se ele se lembra dela, ele diz que provavelmente a única pessoa que notou a música que tocava no lugar naquela dia fui eu.

Acho que é porque ele sabe que eu faço isso, chego em lugares e me lembro de pequenas coisas distintas sobre ele, como, por exemplo, o parque de diversões onde fui aos 6 anos, um ano antes de minha mãe morrer, e a musica infantil animada que tocava bem alto no carrossel, onde girei e girei, sem nunca ficar tonto, ouvindo minha mãe rir e meu pai tirar infinitas fotos para guardar o momento, porque para eles, era como se eu estivesse apenas brincando em um brinquedo qualquer e me divertindo muito, e para mim, era como se eu estivesse voando.

Mas não acho que a música de Jazz que tocava naquela dia se encaixe nisso, meu pai apenas não presta atenção em detalhes, fato, que acho eu, foi o responsável principal por fazer as coisas acontecerem da forma que aconteceram naquele dia, e fato que me faz dar boas risadas nos dias de hoje, quando me sento na varanda da minha casa e me lembro da minha vida a anos atrás, sentindo a brisa gostosa do fim do dia batendo em meu corpo e me deixando relaxado como se milhões de anjos cantassem para me fazer dormir.

Nós estavamos no meio do rinque, e meu pai tremia um pouco do meu lado, provavelmente com medo de cair e me arrastar junto, como já havia acontecido antes, ele deslizava lentamente pelo gelo, como uma criança aprendendo a andar, e isso me fazia dar pequenas risadas, pois naquele momento, mesmo que só por alguns minutos, era como se eu fosse o guia adulto, e meu pai, a criança cega.

E as coisas aconteceram bem rápido em minha cabeça depois disso, em um momento meu pai deslizava desengonçadamente do meu lado, segurando meu braço para não cair e para me ajudar a não esbarrar em ninguém, e no outro seguinte eu não sentia mais ele ou sua mão, e escorregava sem freio para frente, pelo gelo, sentindo quase como se pudesse voar.

Lembro de ouvir as pessoas parando de patinar ao meu redor, provavelmente para observar a cena que se desenvolvia ali, bem em frente de seus olhos, e de esticar minhas mãos em frente ao meu rosto, para evitar que se eu caisse, pelo menos não batesse minha cabeça no chão e causasse um dano maior do que o necessário, e me lembro, mas do que tudo, dos braços da pessoa que me fez parar de voar, porque eles eram quentes e acolhedores, como os de minha mãe, e me lembravam minha casa, mesmo que isso não fizesse sentido nenhum.

Blind • 2Jae (HIATUS) Onde histórias criam vida. Descubra agora