Capítulo 57 - Vitor

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Vitor

Eu virei de um lado para o outro na cama, mas não consegui dormir naquela noite. Abri os olhos e a luz do posto entrava por um dos buracos que havia na telha e iluminava a pequena mesinha do quarto onde estava em cima o papel que Miúdo havia me dado. Eu deveria ter jogado fora aquele papel, mas não tive forças.
A dor de ter perdido a minha irmã era enorme, eu tentava me apegar no que o pastor e o obreiro falavam, mas era difícil quando eu pensava que Liliane teria toda uma vida pela frente, que pensava em estudar, fazer uma faculdade, trabalhar e ter uma vida digna que tiraria a gente daquela situação.
Me levantei e fui beber um copo de água, coloquei a mão no papel, parecia fogo, ardia entre os meus dedos. Coloquei o copo e fiquei encarando, só quando os raios de sol entraram pela janela que percebi que havia amanhecido.
Peguei meu celular e liguei. Não deveria, mas o impulso foi mais forte.
Miúdo marcou o lugar de nos encontrarmos, era um velho bar que ficava na esquina da travessa quatro com a cinco, eu tinha ido tantas vezes naquele lugar! Era um bar muito conhecido por ali, quando cheguei ali várias lembranças me inundaram.
-Canela! -Zeca, o dono do bar me cumprimentou. -Então é verdade, você está vivo! Que ótima notícia! -Ele sorriu e me abraçou. -Venha, deixa eu te levar para a sua mesa.
A minha mesa. Ali era meu reino, aquela mesa era o meu trono. Mas eu era rei do quê? De tristeza? De morte? De angústia?
Me sentei e pela primeira vez senti que aquela cadeira já não me pertencia mais, aquele lugar já não fazia mais parte de mim.
O Canela que havia sentado uma vez ali tinha morrido, eu era só o Vitor. Lembranças de um mês atrás, mas que pareciam tão distantes.
O que eu estava fazendo ali?
-O mesmo de sempre para beber, chefe? -Zeca perguntou já com a garrafa de bebida na mão.
Balancei a cabeça negativamente:
-Eu só quero uma água, por favor.
Mesmo contrariado, Zeca pegou um copo de água e colocou na minha frente. Eu nem encostei no copo, eu deveria ir embora, não deveria sequer ter ligado para Miúdo.
Mas antes que eu pudesse tomar uma atitude de me levantar e sair dali, Miúdo chegou com mais alguns rapazes. Eles cumprimentaram Zeca e vieram até a minha mesa.
Miúdo foi o primeiro a se sentar, os demais olhavam para mim admirados como se não acreditassem no que sera olhos vissem. Nenhum deles ousou sentar sem a minha permissão. Poderia parecer uma forma de respeito, mas naqueles olhos só existia medo.
Ninguém me respeitava por quem eu era, o Vitor não era digno de respeito por eles, já o Canela era digno de medo e terror entre eles.
-Sentem-se. -Minha voz vacilou, mas ninguém percebeu.
-Olha, finalmente você me ligou! Fiquei preocupado que aquele negócio de igreja houvesse entrado na sua cabeça! -Eles riram.
Mas aquele negócio de igreja não só havia entrado na minha cabeça, mas na minha alma, no meu espírito. Não consegui rir daquilo.
Então Miúdo pediu uma cerveja e todos começaram a beber enquanto prestavam atenção no que era proposto.
-Então, descobrimos que o Coroa tem uma filha.
-Uma filha? -Franzi a sobrancelhas.
-Isso, é um bebê ainda, mas sabemos onde fica. Ele visita ela todos os meses, vamos ir lá.
Senti um leve tremor percorrer a minha espinha.
-Ir lá? Fazer o quê?
-Oras, Canela! O que você mandar! -Miudo falou como se fosse algo simples.
-Sim, nós faremos o que você mandar! -Os rapazes repetiram.
Olhei horrorizado sabendo exatamente o que queriam que eu mandasse fazer, só mais desgraça e tormento. Que eu pagasse na mesma moeda tudo o que Coroa havia feito eu sentir.
Era uma alternativa, como se eu pudesse colocar uma pedra naquilo tudo e acabar de vez com aquele assunto.
Mas aquilo só ia começar tudo novamente.
Assim como Liliane, o que aquele bebê tinha a ver com tudo aquilo?
Foi uma péssima ideia ter ido ali, não ia resolver meu problema, só ia aumentar ainda mais. Eu só iria destruir mais vidas, tornaria as pessoas tão amargas quanto eu estava.
-Não.
-Não o quê?
-Não vamos fazer nada. -Me levantei. -Eu não quero vingança.
-Tu tá maluco, Canela?
-Vitor. Meu nome é Vitor. -Olhei para ele decidido. -Não vamos fazer nada, essa é a única ordem que eu vou dar para vocês.
-Tá bom, chefe, mas...
-E a partir de hoje não sou mais chefe de vocês, realmente o Canela morreu quando foi jogado da Ponte do Silêncio.
-E o que você vai fazer?
-Vou viver minha vida de verdade. -Me despedi de cada um deles e sai dali.
Fui em direção a igreja e me sentei nos primeiros bancos próximo ao Altar. Estava um painel, alguns dias o pastor estava explicando sobre o sacrifício que os heróis da fé fizeram no passado. O envelope estava na borda do Altar. Eu peguei, sabia que além do meu sacrifício material, o espiritual seria muito mais difícil.
Peguei o papel de Miúdo e coloquei dentro do envelope. Não era só um número de telefone, era toda a minha velha identidade, toda a vida desregrada que eu tinha. Toda a mágoa, o ódio e o rancor.
Todo o meu passado, eu colocaria dentro daquele envelope. Deus iria mudar o meu caminho.
E Ele mudou.
Não foi a quantia em dinheiro que fez eu receber o Espírito Santo, foi a minha entrega total a Deus. Todas as questões que eu tinha, naquele momento eu havia trocado todos os porquês da minha vida.
Por que a minha irmã havia morrido?
Por que a nossa vida era tão horrível?
Por que tudo de ruim acontecia com a gente?
Eu havia trocado aquilo, para que?
Minha irmã havia morrido. Para quê?
E eu sabia, que mesmo sem entender, foi daquela forma que Deus havia encontrado para que eu pudesse me encontrar com Ele.
Em meio aquela dor eu pude enxerga-Lo.

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