Capítulo 63 - Laura

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Laura

O trânsito era enorme. Eu estava no banco de trás junto com o meu pai, enquanto o nosso motorista esperava a longa fila de carros andar. Olhei para a janela e vi a igreja enorme e meu coração se apertou em tristeza. Não era a igreja que eu ia, aquela era a catedral, mas só de olhar para ela, a falta crescia dentro de mim. Nem naquela que era perto da nossa casa meu pai deixava eu ir, quanto mais a do bairro que era do outro lado da ponte.
-Olhe para frente, Laura. -Meu pai me repreendeu e eu suspirei em tristeza. Olhei para frente e quando cheguei em casa fui direto para o quarto. Eu não tinha contato nenhum com outras pessoas, meu pai restringia totalmente a minha ida até o colégio e a volta.
Eu não tinha acesso a internet, no máximo para fazer algumas lições com alguém sempre no quarto. Eu e minha mãe não conversávamos muito, mas sempre que podíamos, uma dava a mão para a outra e apertava. Era um gesto silencioso de que estávamos juntas e iria dar tudo certo.
Claro, meu pai poderia falar as vozes de entrarem no meu quarto, mas não poderia calar a minha voz interior. Eu passava horas sozinha em meu quarto, e em pensamentos eu conversava com Deus.
Parecia até estranho pensar que antes quando eu tinha todos os colegas da sala comigo eu me sentia tão sozinha, e agora, quando não tinha ninguém, eu me sentia em companhia.
No outro dia eu estava no jardim de casa e vi uma das roseiras se mexendo, sem que o guarda se atentasse, discretamente fui até ali e vi um papel comum entre as flores amassado. Passaria desapercebido, mas franzi as sobrancelhas e abri o papel nas minhas mãos:
"Oi, Laura. Sabemos o que aconteceu, sua mãe conseguiu falar com o obreiro. Estamos todos em oração por você!" E tinha uma promessinha enrolada, era um papelzinho rosa, todo surrado:
Porquanto tão encarecidamente Me amou, também Eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque conheceu o Meu nome. Salmos 91:14
Sorri para aquele papel e o abracei.
***
Depois de um tempo, finalmente meu pai deixou usar o celular novamente, ocultava o aplicativo da Bíblia e as conversas com o pessoal da igreja, mas meu pai sabia que eu conversava e estranhamente não disse ou fez nada. A única coisa que eu ainda não podia era ir a igreja, mas estava confiante que logo mais, ele acabaria se dando por vencido.
Então eu escutava tudo online, às vezes era só um áudio gravado meia boca, mas para mim aquilo era o suficiente, qualquer contato que eu tinha me deixava feliz, por mínimo que fosse, sustentava a minha alma.
Naquela semana, o obreiro havia falado sobre a importância do batismo com o Espírito Santo e que todos nós deveríamos buscar porque tudo que tínhamos dependia de te-Lo dentro de si. Ele era a garantia de que ficaríamos bem, mesmo que tudo ao nosso redor estivesse mal.
Me desesperei, como eu ia receber o Espírito Santo se não podia ir na igreja? Como Ele iria vim sobre mim?
Peguei meu celular, eu precisava ligar para o obreiro, mas antes que eu discasse o número, meu pai apareceu na porta do quarto sorrindo e segurando uma sacola:
-Oi, filha. -Ele parecia meio receoso, como se escolhesse cada palavra com todo o cuidado possível. Desde aquele dia, nossa t relação que já era difícil, se tornava cada vez pior. -Hoje vai ter um jantar em família, seus tios irão vim aqui. -Meu corpo começou a tremer involuntariamente. -Comprei um vestido para você, tenho certeza que irá gostar.
Ele colocou o vestido em cima da minha cama e saiu. Toda vez que acontecia algo entre nós, meu pai me dava alguma coisa material para suprir todo o afeto que faltava.
Nem abri a sacola, meu coração se apertou. Faziam três anos que meu tio não ia até a nossa casa.
Três anos que ele não me tocava.
Fechei os olhos e senti todo aquele terror e angústia voltando. Eu fechava os olhos e via ele me trancando em alguns dos cômodos da nossa casa, enquanto o jantar rolava. Ou quando ele ia até o meu quarto a noite, quando ninguém mais estava acordado.
Respirei fundo e balancei a cabeça. Disquei o número, mais do que tudo, eu precisava ter o Espírito Santo que o obreiro falava, se não, eu iria voltar para o mesmo estado que eu estava antes.
-Laura? Alô? Que bom que você conseguiu me ligar, sentimos muito a sua falta, como você está?
Meu quarto se encheu de paz e segurança. Quanto mais eu conhecia o obreiro, mais desejava ter o Espírito que ele tinha que era capaz de transmitir aquela paz só de falar.
Conversamos por alguns momentos e expliquei o porque de ter ligado.
-Laura você não precisa estar dentro da igreja física para receber o Espírito Santo.
-Não? -Perguntei confusa.
-Não! O Senhor Jesus é Onipresença, Ele está em todos os lugares. Ele é o Batizador, por isso, um lugar físico não é impecilho nenhum, o que nos impede de receber o Espírito Santo é quando temos algo dentro de nós que não queremos deixar. Por exemplo, um sonho, uma vontade, uma mágoa, um sentimento... Essas coisas quando ocupam o nosso coração é que impedem do Espirito Santo vir até nós.
Foi aí que toda aquela angústia explodiu e eu comecei a chorar.
Chorei, porque sabia o que tinha que fazer.
Chorei, porque não era justo, como eu iria perdoar alguém que não merecia meu perdão?
Alguém que me humilhou, me rejeitou, me machucou, me matou emocionalmente?
Chorei, porque entendi que não era justo eu receber o perdão de Deus.
Chorei, porque eu não merecia também.
Chorei, porque eu também tinha sido esse alguém que havia humilhado, rejeitado, machucado e matado o Senhor Jesus.
-Esta tudo bem, Laura?
-Obreiro, eu preciso te contar uma coisa... -Minha voz saia rouca por causa das lágrimas. -Eu nunca contei isso para ninguem.
-Não é melhor esperar para termos a oportunidade de conversar pessoalmente?
-Não, obreiro. -Suspirei. -Se eu não contar agora, não vou conseguir mais. -Ele concordou e talvez fosse até mais fácil pelo telefone. Enchi o peito de ar e voltei para aquelas lembranças que eu fazia de tudo para ignorar, achando que se eu não lembrasse ou falasse, elas passariam não existir mais. Era uma ferida que não tinha cicatrizado e qualquer coisinha voltava a sangrar. -Quando eu tinha dez anos, meu tio sempre vinha aqui em casa para jantares em família... Minha casa é enorme, então há diversos quartos. Em um desses jantares ele me levou para um desses quartos e... -Eu queria vomitar, só de lembrar. -Abusou de mim. -Eu só escutava a respiração do obreiro do outro lado da linha, mas podia imagina-lo na minha frente como um irmão mais velho, que iria me ajudar, mesmo que não soubesse como, ele estaria ali me protegendo. -E isso tem acontecido todas às vezes que ele vem aqui em casa. Eu pensei diversas vezes em contar para os meus pais, mas eles não iriam acreditar em mim. Meu tio é o irmão mais novo do meu pai, meu pai praticamente o criou. Além de que ele faz parte da empresa, disse que se eu contasse algo, faria com que meu pai perdesse tudo. -Naquele momento eu só soluçava, as lágrimas já não escorriam mais. -Meu pai dá a vida naquela empresa, eu não poderia ser o motivo para que ele perdesse tudo.
-Meu Deus, Laura...
-E eu sei que tenho que perdoa-lo, mas eu não consigo!
-Você quer ter o Espírito Santo?
-Sim!
-Mais do que ter essa raiva dentro de você?
-Sim...
-Então é o sacrifício que você precisa pagar.
-Ele vai vim aqui hoje, terá um jantar e eu estou com medo. Estou com medo de tudo.
-Fique calma, vamos primeiro fazer uma oração por você e por ele. -Concordei. -E depois, você precisa conversar com o seu pai.
-Com o meu pai? -Falei assustada.
-Sim, nesse momento ele vai ser o único que pode te proteger e te ajudar em relação a justiça dos homens.
-Justiça... Como assim?
-Seu tio não pode ficar impune, isso é crime, Laura...
-Eu sei, mas eu tenho medo. -Repeti. -Meu tio é uma pessoa importante, a justiça não parece mandar nele...
-Me prometa que vai conversar com seu pai! Ele é o único que pode evitar essa situação.
Fiquei em silêncio, como eu ia contar aquilo?
Mas o obreiro estava certo. Ele orou por mim, oramos juntos pelo meu tio. Disse que estaria com o celular ligado, mas que se fosse preciso, ele iria até a minha casa, mesmo que fosse longe.
Mas quando eu desliguei, eu sabia que mesmo que ele atravessasse a ponte, a cidade... Aquele caminho eu tinha que fazer sozinha.

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