Capítulo 5 - Renato

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Renato

Amarrei os cadarços da minha bota e olhei para o espelho. Mesmo com o cabelo descolorido, os piercings e o lápis contornando os meus olhos eu me parecia com ele.

Meu celular tocou notificando uma nova mensagem de Guilherme, avisando que me encontraria na rua Gonçalves, perto da ponte do Silêncio. Iríamos para o cemitério da Vila do outro lado, já que o da cidade de Vicente estava fechado.

Coloquei o celular dentro do bolso e vesti minha jaqueta preta, sai do meu quarto, mas antes que pudesse descer as escadas, escutei do quarto da minha mãe alguns soluços.

Eram abafados, como se ela estivesse fazendo de tudo para que eu não percebesse que estava chorando. Desde quando meu pai havia saído de casa, era a mesma coisa, por mais que ela tentasse se fazer de forte, todas as noites eu a escutava chorar.

Minha mãe tinha tudo, uma casa ótima, um trabalho digno, carros e dinheiro, e mesmo assim meu pai havia conseguido fazê-la sofrer. Toda vez que eu pensava naquilo, meu coração se enchia de ódio.

Como uma pessoa que dizia que amava outra poderia causar tanto sofrimento?

E ali eu sabia que não existia amor.

-Mãe? -Bati em sua porta e ela rapidamente passou a mão pelo rosto como se seu nariz inchado não evidenciasse ainda mais que ela estava chorando. -Estava chorando de novo?

-Não.. -Ela tentou abrir um sorriso, mas falhou miseravelmente.

Apertei os punhos com a raiva novamente acendendo o meu peito, até quando a ausência do meu pai faria aquilo?

-Seu pai ligou. -Ela declarou e olhei desacreditado. -Ligou me pedindo perdão.

-O senhor Rogério? Ligando para pedir perdão? Tem certeza que estamos falando do mesmo homem? -Perguntei cheio de sarcasmo, eu conhecia bem o meu pai para saber que aquilo não era seu estilo.

-Ele disse que estava arrependido por ter feito tudo aquilo...

-E agora ele quer voltar?

-Na verdade, ele me convidou para ir naquela igreja.

Ri ainda mais alto com toda a amargura explodindo em minha garganta:

-Foi aquela porcaria de igreja que o fez sair de casa, mãe! Nem morto eu colocarei meus pés ali! -Bati a porta de seu quarto com força e sai de casa.

Ajeitei a gola da minha jaqueta e segui pelas ruas até o começo da ponte onde iria encontrar os meus amigos. O frio da noite me envolvia, mas mesmo longe de casa, longe de tudo aquilo que me lembrava o quanto a minha família era destruída, eu me sentia quebrado por dentro.

-Oi meu amor. -Katia deslizou seus longos dedos sobre meu pescoço e me beijou mordendo a minha boca até uma gota de sangue surgir entre meus lábios.

Sorri a segurando pela cintura e Guilherme apareceu ao lado de Xander e Fagner.

-E aí. -Um deles me cumprimentaram e eu apenas acenei com a cabeça quando começamos a andar em direção a vila, seria uma caminhada curta, de uns quinze minutos. -Faz tempo que a gente não vai até lá. -Fagner observou, mas eu não prestava muita atenção.

Na verdade, tudo o que eles falavam e riam eu não prestava atenção. Mesmo quando chegamos ao cemitério, contamos algumas histórias e rimos, eu não estava ali de fato, meus pensamentos voavam em direção ao meu pai.

-O Wendel fez uma tatuagem enorme nas costas. -Kátia falou seguindo de vários olhares de admiração. -Disse que doeu.

-Ele é fraco. -As palavras saíram antes que eu pudesse para-las.

-Ah, para! Renato, você nem tem uma tatuagem!

-Mas posso fazer uma. -Arquiei uma das sobrancelhas de uma maneira desafiadora. -Só precisamos de um alfinete, o isqueiro, o álcool e a tinta.

Xander sorriu:

-Vou comprar a tinta, tem uma loja de conveniência quando passamos por aqui, eu duvido que você vai fazer.

Eu não poderia dar pra trás naquele momento, mesmo que não dissessem eu sabia que todos eles achavam que eu era alguém que deveriam se espelhar, que não tinha medo de nada e que não estava nem aí para as coisas que realmente importavam.

Estendi o meu pulso e Guilherme abriu uma garrafa de vinho para usar como esterilizador. Katia tirou um de seus alfinetes que possuía em suas roupas e Fagner estendeu um lenço que usava no pescoço.

Xander abriu a tinta e entregou o isqueiro para Guilherme que acendeu contra a ponta do alfinete até deixa-lá vermelha.

-Você tem certeza disso? -Kátia perguntou.

Sorri confiante:

-Manda a ver!

No começo foi dolorido, mas com um tempo a dor se tornava suportável. Quando Xander terminou o hexagrama eu olhei para meu pulso avermelhado e inchado.

-Cara, você é louco! -Xander sorriu junto com o restante da turma.

Eu sorri também. Aquele era o Renato que eles conheciam, o rapaz que não tinha medo, que não sentia dor e que não tinha limites, e era só aquele Renato que eu mostrava para os outros.

Nós andávamos pela comunidade quando passamos em frente a uma igreja, era pequena, mas mesmo assim eu sabia do poder que aquilo tinha.

Havia sido por causa daquilo que meu pai havia ido embora.

Mesmo com o pulso dolorido me virei para Xander e pedi o restante de tinta preta.

-O que você vai fazer? -Ele me olhou confuso enquanto eu abria o pote e me dirigia a porta de aço.

Sem pensar duas vezes comecei a jogar tinta de uma forma cruel e quando não restava mais nada no pote, o silêncio foi quebrado por mim que não media esforços para chutar a porta.

Os sons devem ter acordado todas as famílias que moravam ao redor, mas eu não me importava quanto mais eu chutava a porta, mais a raiva crescia em meu peito.

Eu queria que eles soubessem o que haviam causado na minha família. Queriam que eles sentissem ao menos um pouquinho da dor que eu sentia todas as manhãs ao ver como minha mãe chorava. Eu queria destruir aquela porta e tudo que eu visse pela frente assim como eu havia sido destruído com a separação dos meus pais.

Sem perceber, lágrimas escorriam pelos meus olhos e a raiva explodiam em minha garganta, eu estava gritando.

-EU ODEIO VOCÊS! COMO PODEM CONTINUAR AGINDO NORMALMENTE QUANDO DESTRUIRAM A MINHA FAMÍLIA? -Kátia segurou meu braço, ao que parece algumas pessoas finalmente estavam abrindo suas janelas por curiosidade. -EU ESPERO QUE SOFRAM AINDA MAIS DO QUE EU SOFRI!

Minha garganta ardeu e Kátia finalmente conseguiu me puxar junto com Guilherme e eu deixei que me levassem, meu corpo tremia com a raiva e eu só conseguia repetir para mim mesmo:

-Eu nunca vou colocar meu pés ali.

Na nossa vida sempre fazemos diversas escolhas de caminhos que deveríamos seguir, e eu sabia que aquele caminho que aquela igreja pregava era o único que eu jamais seguiria.

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