Capítulo 71 - Daniel

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Daniel

Eu havia perdido o emprego.
Eu havia perdido a faculdade.
Eu estava perdendo a minha família.
E ia acabar me perdendo.
Depois que o obreiro havia ido lá em casa, eu havia ficado incrivelmente chateado, mas ao invés de ficar com raiva de mim por causa daquela situação que eu mesmo havia me colocado, eu estava com raiva do obreiro, porque se eu estava daquele jeito foi porque ele não havia cuidado de mim.
Ele havia cuidado de tantas pessoas lá fora e havia achado que quem estava dentro já estava garantido.
Eu tentava me convencer daquilo, mas no fundo, por mais que eu não quisesse reconhecer, eu entendia que a minha vida dependia das minhas escolhas.
E a minha escolha naquele momento era estar a mais de cinco dias fora de casa. Eu ficava pulando de um lugar para o outro. Estava usando a mesma roupa, mas não me importava. Eu usava droga, dormia, comia alguma besteira e voltava a usar drogas.
Era um ciclo, e eu sentia que não tinha como quebrar.
Olhei para o celular que ia vender para conseguir mais drogas, ele brilhou a tela mostrando mais de vinte chamadas perdidas da minha mãe.
Mas isso não me tocava mais, eu tinha vergonha de olhar para eles.
Um filho tão promissor, havia perdido tudo em tão pouco tempo.
Entretanto, a mensagem que me chamou a atenção não foi essa. Foi uma publicação no Facebook, era uma foto de dois jovens se abraçando e a legenda era:
"Nada compensa a falta do Espírito Santo na nossa vida, mas o Espírito Santo compensa a falta de qualquer coisa."
-E aí, mano? Vai querer? -O rapaz pressionou com a mão estendida para pegar o celular e me dar o pacotinho.
Voltei a realidade.
O que eu estava fazendo? Eu parecia um morto vivo!
Me virei e comecei a correr. Corri até a igreja, mas o obreiro não estava lá.
Eu precisava de ajuda.
Se eu não encontrasse o obreiro, eu ia acabar usando mais e mais e não ia conseguir. A vontade já estava começando a aflorar em meu corpo, senti as pernas tremerem e as costas suarem frio.
Tive a brilhante ideia de ir até a casa do obreiro. Ele não atendia o celular, e eu contava que ele fosse ainda a única pessoa que não tinha virado as costas para mim.
Meus pais poderiam tentar me ajudar? Poderiam. Mas eu via que eles já tinham tantos problemas, por que tinham que lidar comigo?
E eu pensava, meu Deus, eu não tenho nenhum amigo. Ninguém de verdade estava do meu lado.
Os meninos da faculdade eu não podia contar, ninguém do beco estava se importando comigo. Eles só estavam comigo quando era conveniente.
Cheguei a porta da casa dele e bati. Uma mulher alta e loura apareceu. Seus olhos eram tão claros quanto os do obreiro.
-Posso ajudar? -Sua voz era cansada. Havia olheiras debaixo de seus olhos.
-Desculpe... -Ela me olhava de cima a baixo e segurou a porta com mais força. Talvez, temerosa de que eu poderia oferecer algum tipo de perigo. -O obreiro Henrique está?
-Não. Ele saiu agora.
-Ele foi a onde? -Perguntei aflito, pronto para ir atrás onde quer que ele tivesse ido.
A mulher hesitou em responder.
-Não vou fazer nada com o obreiro. -A assegurei. -Ele é quem precisa fazer algo por mim. Ele é o único que pode me ajudar. -Eu ia começar a chorar, a voz sumiu.
-Você não está bem, né?
-Não, por favor, eu preciso de ajuda.
Ela respirou fundo e abriu a porta da casa.
-Entre, ele só foi no mercado e já está voltando. -Eu entrei sem graça. -Mas se você tentar alguma coisa eu te dou uma facada. -Ela olhou para mim.
Levantei as mãos e sentei em um banco de madeira que estava ali próximo.
-Meu nome é Helena. -Ela se apresentou.
-O meu é Daniel. -Respondi.
-Não perguntei. -Ela me fuzilou com o olhar novamente. Que moça delicada! Pensei. Mas antes que eu pudesse responder na altura, ela deu de ombros e disse que ia no quarto e já voltava.
Foi quando eu caí em mim. O que eu estava fazendo ali? Por que eu tinha que pedir ajuda para o obreiro?
Só iria mostrar que ele tinha razão aquele tempo todo! Eu precisava me recompor, eu não precisava de ninguém, não precisava de ajuda! Eu precisava era seguir a minha vida, continuar andando!
O barulho de um celular em cima da mesa me chamou a atenção. Me levantei para olhar e o peguei na mão. Era um celular bom, talvez fosse de Helena pela capa de flores e rosa.
Era melhor eu dar no pé. Era só ir até algum ponto de drogas, trocar aquele celular pelo que eu mais precisava naquele momento.
Afinal, se todo mundo havia me abandonado, a droga não tinha. Ela estava comigo.
Olhei para a tela do celular, a Bíblia online estava aberta e um versículo selecionado:
Porque assim diz o Alto e o Sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é Santo: Num alto e santo lugar habito; como também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e para vivificar o coração dos contritos. Isaías 57:15
Minha garganta fechou e a visão embaçou. Ainda que ninguém estivesse comigo aparentemente, Deus estava. Eu poderia contestar a palavra de todo mundo, mas não podia contestar a palavra dEle.
-O que você está fazendo com o meu celular? -Helena apareceu no corredor.
Antes que eu pudesse tentar me explicar para aplacar a sua raiva, o obreiro abriu a porta e arqueou as sobrancelhas:
-Daniel? -Ele me chamou.
Mas ali eu sentia que já não era mais eu. Peguei o celular e ataquei com toda a força em direção ao o obreiro, por pouco não o acertei.
-Você tá maluco? -Helena gritou.
E eu gritei. Uma raiva enorme cresceu em meu peito. O obreiro colocou a sacola do lado e veio até mim, mas o empurrei e sai correndo rua a fora. Eu atravessa as ruas sem me importar com carros ou motos e mesmo que ouvisse o obreiro me chamando era como se eu estivesse debaixo d'água, com o corpo adormecido e outra pessoa tivesse controle sobre mim.
Foi quando dei por mim, eu estava em pé na Ponte do Silêncio de frente aquelas águas turvas.
-Daniel... -A voz do obreiro era ofegante atrás de mim.
-Não chegue perto de mim! Eu te odeio! -Minha voz soou estranha aos meus próprios ouvidos. -Odeio tudo que você tem feito, odeio porque mesmo eu fazendo de tudo, você não tem desistido desses jovens! Maldito o dia que você veio para cá! Eles eram meus! Principalmente esse daqui! Ele tem um valor enorme para mim!
-Mesmo que eu desistisse, tem uma Pessoa que nunca vai desistir dele, ou de qualquer outro jovem. -Ele respirou fundo. -Eu sei que ainda não aconteceu nada pior pelas orações e propósitos que eu faço por cada um deles, e até aqui Deus tem me sustentado. São batalhas que eu não vejo acontecer, mas são as principais, são essas que Deus tem guerreado por mim. Eu não posso ver o mundo espiritual, mas tenho plena consciência de que ele existe. E sei que não basta apenas a minha parte, mas a sua, Daniel. Eu estou aqui, e principalmente o Senhor Jesus está aqui para te ajudar, Ele nunca te abandonou. Basta você querer. -Estendi a mão. -Vem, Dan. Volte para o lugar que você nunca deveria ter saído.
Com a menção do nome de Jesus senti ter o domínio das minhas mãos novamente. Abri e fechei os pulsos.
Era a voz do obreiro contra milhares de pensamentos, pensamentos que diziam para pular.
Era só pular que acabaria com todo aquele sofrimento.
Mas eu conhecia a Verdade, a verdade era impossível de ir contra ela.
Conhecia a Verdade, e ela me libertaria.
Me virei, e estendi a mão para o obreiro.
Parecia um esforço enorme, como se eu estivesse tirando uma tonelada de cima de mim.
O obreiro não esperou, me puxou para um abraço e eu sussurrei:
-Me perdoa... -Chorei como uma criança.
-Seja bem-vindo de volta, Dan. Existe ex esposa, ex patrão, ex funcionário... Mas não existe ex filho.
Não consegui nem falar. Ali era o meu caminho que eu nunca deveria ter saído.

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