Capítulo 105

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Antes de dormir fiz chamada de vídeo com a Nat.

Nat: Oi vida...

Eu: Oi vida. Já estou com saudade.

Nat: Eu também – fez biquinho.

Eu: Vai ser um tédio sem você aqui.

Nat: Eu já estou achando essa cama tão grande sem você amor. – suspirou.

Eu: Não posso te contaminar. Aquele hospital está um caos.

Nat: Eu sei. Como está sua saturação?

Eu: Está boa. A da Manu e da Lohana também. Estamos um pouco cansadas, a Manu está com um pouco de febre, já a mediquei, estamos bem. Obrigada pela sopa estava uma delicia.

Nat: Elas já dormiram?

Eu: Já sim.

Nat: A Agatha testou positivo também, e a Sonia também. Estão isoladas em casa, mas estão passando bem na medida do possível. Isso é uma loucura amor. - suspirou.

Eu: Sim, é uma grande loucura, e só fica pior. Temo que não vamos sair disso tão cedo amor. Estamos perdendo muitas pessoas.

Nat: Minha mãe falou que só no hospital que ela está atendendo hoje, morreram 120 pessoas. Está descontrolado.

Eu: E tem as pessoas que são negacionistas por causa de políticos idiotas, isso tem piorado tudo.

Nat: Nem fala amor. Hoje eu atendi um homem que mal conseguia falar, testou positivo e disse que isso era um acordo entre farmácias, a oposição e os hospitais para ganharmos dinheiro que era tudo uma farsa. Recusou tratamento e foi embora. Resultado disso? Desmaiou no estacionamento e morreu na emergência. – conversamos um bom tempo e fomos dormir. Na manhã seguinte recebemos mais uma hóspede, Nathalia Diorio. Testou positivo. A família deu negativo então ela foi ficar lá com a gente. Os primeiros dias foram mais difíceis, com febre, cansaço, indisposição. Lohana passou muito mal no começo, e estávamos fazendo de tudo pra ela não precisar de internação. Logo testamos negativo, a Diorio ainda estava dando positivo e ficou na casa de hóspedes. Eu fiquei mais uma semana em casa, a Lohana e a Manu também e voltamos a trabalhar. O hospital parecia um inferno. Todos os dias muitos e muitos óbitos. O que mais doía era ver um caminhão frigorifico no estacionamento do hospital todas as vezes que eu chegava e ia embora. O familiar de alguém estava ali. Em um dia foi tão intenso que parece que nossa energia foi toda para o chão. O hospital deu uma acalmada no meio da madrugada, era por volta de 3:30 da manhã. Tinha um corredor desativado que estava em reforma e teve que parar por causa do covid então ali era nosso refugio para o silencio. Quando cheguei lá, estavam Dani, Diorio, Lohana e Manu... Todas sentadas no chão e exaustas. – Oi...

Todas: Oi...

Eu: Isso precisa acabar... – suspirei.

Dani: Eu não aguento mais.

Diorio: Quando parece melhorar um pouco vem uma onda gigante e nos derruba.

Lohana: Eu nem me lembro mais quantos óbitos eu declarei hoje.

Manu: Um dos meus maiores medos na faculdade era de um dia ter que intubar alguém. – a olhamos. – Só hoje eu intubei 18 pessoas. Eu tentei reanimar 47 e declarei óbito de 59. Eu fiz 59 ligações hoje para familiares para dizer que seu ente não resistiu. E eu sou só uma interna... Desde que tudo isso começou, eu já devo ter declaro uns 600 óbitos ou mais, e eu ainda nem comecei a minha carreira. – falava sentida. – E as pessoas não param de fazer festinhas, de irem a barzinhos, de saírem sem máscaras. Hoje eu tive que escolher se intubava um senhor de 75 anos ou um senhor de 67 anos. Tive que escolher qual dos dois iria ter a chance de viver e qual iria para aquele caminhão frigorifico que está nos assombrando no estacionamento – deixou cair uma lágrima. – A gente não deveria ter que fazer isso.

Eu:Eu sei filha... Tem sido muito difícil. A gente tem recebido mais pacientes doque podemos aguentar, a gente tem perdido mais pessoas do que deveríamos e aspessoas não tomam consciência e as coisas pioram. – a gente foi comer, não comemos nada o dia todoe fomos descansar um pouco. Fui pra minha sala entrei no meu banheiro e meolhei no espelho. Eu estava cansada, precisando pintar meu cabelo, meu rostoestava ressecado e machucado. Era tão surreal tudo aquilo. Eu estava preocupadacom a minha família, com meus amigos. Só queria que tudo aquilo passasse. Ummês depois Natalie testou positivo, Maddie e Olivia também, pegaram dela e elase sentiu super mal com isso. Natalie ficou deprimida, com medo delas ficaremmuito mais doentes e ser culpa dela, foi terrível a temporada dela doente. Apósum ano de pandemia a vacina veio e nós profissionais da saúde fomos osprimeiros a vacinar. A Maddie e a Olivia tomaram também, todos os familiaresdos médicos e enfermeiros tomaram o descarte da vacina. Era um dose que erajogada fora de cada frasco, e no meio daquele caos era até um pecado jogarfora. Então a OMS liberou que nossos familiares residentes na mesma casatomassem. Foi um dia muito emocionante para nós. As meninas ficaram um poucoindispostas, mas em dois dias ficaram bem. Eu e Natalie estávamos nos sentindobem. Os casos começaram a cair após a vacina. Boston estava lidando bem com ovírus, Massachusetts foi o primeiro estado a ter queda no número de casos, deóbitos e de internações. Ainda tomávamos todos os cuidados no hospital por querecebíamos muitos pacientes ainda e foi nessa intensidade até o meio do anoseguinte quando finalmente começou a normalizar em Boston. 

NATIESE EM: ENTRE O AMOR E O ORGULHO - RECOMEÇOS.Onde histórias criam vida. Descubra agora