Capítulo 35

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Era claramente visível o conflito existente entre as duas mulheres, que apontavam seus revólveres na direção uma da outra. Apesar de toda a situação vivida pelas duas nos últimos dias, parecia que aquela não era a primeira ocasião em que Annchi Zhang e Kassandra Winslet se degladiavam. Elas se entreolhavam friamente, como se uma conhecesse a alma da outra, como se cada uma delas soubesse o ponto fraco da inimiga. Então, identificando todos esses fatos em poucos segundos, Solomon Locke abaixou o seu rifle e deixou que as duas mulheres resolvesse o que quer que fosse.

- Pelo que estou vendo, você não se encontra em condições de me desafiar, doutora Zhang! - exclamou Kassandra, claramente se referindo à perna de Annchi.

- Sabe muito bem que mesmo um ferimento como esse não vai poder me impedir de incriminar vocês por tudo o que estão fazendo. A Organização Ômega já realizou incontáveis atrocidades, mas isso já foi longe demais, Kassandra! Mesmo se tratando de você, é um crime brutal demais para acreditar que seja real!

- Você não está entendendo o projeto em sua real magnitude, formiguinha! Parem todos vocês e pensem um pouco... O Orpheu é um novo início para a humanidade! O que estamos desenvolvendo é uma nova modalidade de vida, na qual enfim superamos a morte e nos tornamos seres indestrutíveis. Nenhuma doença poderá atingir àqueles que experimentam a benção do Orpheu. Nossos corpos não sofrerão mais ferimentos, nem mesmo disparos de armas de fogo poderão nos abater. Annchi, pense no Orpheu como sendo a próxima etapa da evolução humana!

Annchi sentiu o estômago revirar de tal maneira que pôde sentir o gosto da bile invadir a sua garganta.

- Eu não posso acreditar! Por acaso você está se ouvindo dizer essas palavras, Kassandra? Como pode falar em evolução humana? Tudo o que vimos desde o vazamento desse vírus maldito são cadáveres ambulantes, sem a mínima percepção de humanidade. E você ainda abre a boca com orgulho para dizer que o Orpheu é uma "benção"?

- E por que haveria de duvidar, formiguinha? Logo você que foi abandonada por todo mundo que julgou conhecer. Deveria concordar comigo quando digo que a humanidade que conhecemos deveria sofrer o pior de todos os castigos. Você me toma por criminosa, mas veja o mundo ao nosso redor... todos são cruéis e impiedosos, Annchi. A diferença entre uma pessoa para outra é que algumas têm a total coragem de dar vazão à maldade enquanto outras conseguem reprimir, por empatia, respeito ou até mesmo por amor. No entanto, via de regra, no mais íntimo do seu ser, todos os seres humanos desejam o pior para o seu semelhante. Veja nossos queridos zumbis... Eles são unidos, possuem formação de batalha como nenhum outro exército é capaz de manter. São disciplinados, não existe risco de deserção, e o mais importante. Uma vez unidos, é praticamente impossível derrotá-los.

- Estão fazendo tudo isso por pura ganância! - gritou Annchi, não conseguindo mais conter sua fúria - Tudo isso por dinheiro e poder. Por acaso não percebem que estão extinguindo tudo o que conhecemos por vida na Terra? De que valerá todo esse dinheiro quando não houver mais nada no planeta?

- Nós somos os donos do mundo agora, formiguinha! Podemos recriá-lo a nosso bel-prazer, da forma que quisermos, assim como no Minecraft. Seremos reis, imperadores... seremos deuses!

- Você não acredita em nada disso, Kassandra! Sabe melhor do que eu que não será assim! Você quer vingança, e somente isso! Quer se vingar de tudo e de todos por algo que não se encaixa aqui. Tudo isso está acontecendo porque você não consegue superar de jeito nenhum... O mundo não tem culpa pelo que aconteceu naquele dia, há oito anos..

- Cale essa boca! - esbravejou Kassandra, surpreendentemente furiosa - Não se atreva a mencionar com essa sua boca imunda nem mais uma palavra sobre esse assunto. Eu juro por Deus que se me fizer lembrar de novo daquilo...

- Não é necessário que eu faça você se lembrar! Você nunca irá se esquecer e nem deveria... Mas não culpe a tudo e a todos, porque isso é absurdo! Você pode destruir esse planeta e toda a vida que há nele, mas nada vai mudar, Kassandra! Procure aceitar e vamos reverter toda essa situação.

- Sua vagabunda, eu vou fazer você engolir sua língua!

Nesse momento, Kassandra Winslet, com sua personalidade transformada por completo, empunhou novamente seu revólver e se preparou para finalmente atirar em Annchi e Solomon quando repentinamente um outro projétil atingiu sua mão de raspão, fazendo com que ela derrubasse sua arma no chão. Quando ela rapidamente moveu o pescoço e olhou para trás, se deparou com Alex Stevens, que se preparava para efetuar um novo disparo.

- Você! Acho melhor se render! Caso não tenha percebido, está cercada!

- Isso é o que nós vamos ver! - exclamou Kassandra em voz baixa. Em um lapso de agilidade, ela rolou pelo chão e conseguiu recuperar seu revólver. Ainda agachada, correu para trás da Ford Ranger e efetuou dois disparos contra Alex, que conseguiu se proteger e revidar com mais três balas da Magnum. Todos os tiros atingiram a lataria do carro. Solomon correu pelo outro lado na intenção de cercá-la e proteger Annchi, porém Kassandra conseguira abrir a porta do veículo e assumir a direção. Ela pisou fundo no acelerador e arrancou contra Solomon, que conseguiu evitar o atropelamento, se lançando para a esquerda. Annchi efetuou mais três disparos com a Ruger, porém não obteve êxito contra o veículo que estava em alta velocidade. O primeiro projétil atingiu em cheio o retrovisor direito e os dois restantes acertaram o para-lama esquerdo e o para-choque traseiro. Kassandra conseguiu fugir pela trilha adjacente aos arredores do hospital de Westfield.

Alex correu ao encontro de Annchi e perguntou:

- Está tudo bem? Não deveria entrar em batalha com esse ferimento aberto!

- Eu tô bem, mas esses malditos... eles não vão descansar, Alex! Agora eles sabem do nosso esconderijo.

- É, sabem sim! Por isso precisamos nos proteger agora mais do que antes.

Solomon desmontou o seu rifle e se aproximou de Annchi e Alex.

- Aquela mulher parecia te conhecer muito bem, doutora Zhang! Há algo que queira nos contar?

Annchi deu um profundo suspiro. Não era de impaciência por ter que dar satisfações sobre sua relação com Kassandra. Na verdade, àquela altura ela não se importava se todos soubessem de sua história. O que a entristecia era o fato dela conhecer a antiga doutora Kassandra Winslet, a primeira, de oito anos atrás. Totalmente diferente da atual assassina.

- Eu conheço Kassandra há anos, e o que posso dizer é que nós... nem sempre fomos inimigas. Porém, algo aconteceu no passado que abalou completamente a nossa amizade. É uma longa história.

- Vai ter que ficar pra depois! - interrompeu Alex - Olhem aquilo!

Solomon e Annchi se viraram então na direção para onde Alex apontava e se depararam com a imagem do mais puro terror. A horda de Carnívoros finalmente havia chegado aos arredores do hospital. Cadáveres errantes de todas as idades e estados de decomposição caminhavam, trôpegos, esbarrando uns nos outros, salivando bile negra e emitindo sons apavorantes de lamento. O odor era insuportável e à medida que as criaturas se aproximavam, mais mortos-vivos eram atraídos pelo sussuro de agonia dos companheiros. Alex virou-se para Solomon e exclamou:

- Eu vou distraí-los por enquanto! Precisamos levar Annchi de volta à sala de observação!

- Você ficou maluco? - a biocientista protestou imediatamente - Vai ficar aqui sozinho com todos eles? Isso é suicídio!

- Não podemos nos arriscar muito com o seu ferimento do jeito que está - insistiu Alex - Se isso se tornar uma infecção, eu... não quero nem imaginar!

- Alex tem razão, doutora Zhang! - disse Solomon - Embora seja jovem, é um militar experiente e pude ver que é um grande estrategista. Nesse momento, só iremos atrapalhar. Venha comigo, precisamos tratar desse ferimento antes que fique ainda pior!

Visivelmente relutante, Annchi se volta para Alex e lhe diz:

- Por favor, tenha cuidado! Se vir que as coisas vão ficar ainda mais feias, recue!

- Pode deixar! - Alex respondeu, entregando o antibiótico para ela - Fique boa logo, ainda temos muito a fazer!

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