Colação de grau: o discurso de Victória

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Quando Victória finalmente subiu no palco montado no pátio da escola, olhou para seus colegas, amigos e família. Foi tomada por uma súbita vontade de chorar. Todos a encaravam com os olhos brilhando em expectativa e isso só aumentava seu frio na barriga.

Então, ela encarou o texto que passara horas redigindo e ensaiando. Segurou o microfone com força e se aproximou do púlpito.

— Boa noite! É... eu escrevi um conto pra esse momento. Pode não ter muito a ver com este dia, mas tô nem aí. Vou ler mesmo assim. — Alguns alunos riram por causa da forma com que ela falou. — Aliás, conversei com o diretor, mostrei o texto e ele falou que eu podia ler. Então — ela encarou o papel —, aqui vai.

O monstro no canto do quarto

Começou tão pequeno que mal era notado. Esgueirava-se pela parede. Na luz, podíamos vê-lo, mas na escuridão, ele se misturava com as sombras do ambiente. Embora invisível, algumas vezes, o monstro nunca saía de lá. Pelo contrário, era alimentado dia após dia.

Quanto mais ele crescia, mas a garotinha, dona do quarto, encolhia. Ela tinha uma vida, fazia mil coisas, usava muitas máscaras. Não tinha medo do monstro, mas temia que os outros vissem, então o escondia no quarto. O problema foi que quanto mais ele crescia, mais difícil era escondê-lo. Este, quando tivesse tamanho o suficiente, viria a devorar sua dona e assumir todo o controle de sua vida.

Esse é o problema com os monstros que ignoramos e os alimentamos silenciosamente no porão da nossa mente deturpada. Quanto mais o monstro cresce, mais habilidades destrutivas ele ganha. Um desses, quase acabou com a minha vida. Mas, um dia, alguém abriu as janelas do meu quarto e deixou a luz entrar. Quando olhei para ela percebi que aquele monstro não poderia ser maior e o enfrentei. E a verdade é que quanto mais enfrentamos e vencemos as pequenas batalhas, menor ele se torna. A garotinha não teve forças para detê-lo e ele minou todas as áreas de sua vida. Mas comigo não foi assim.

Victória largou o papel e encarou a multidão, os olhos ardendo.

— Todos nós temos um monstro no canto do quarto. Não importa o quão incrível você pense que é. Você pode ser o rei da Inglaterra ou tirar as notas mais altas na escola. Mas todos os dias, se olhar para dentro de si, ele vai estar ali. O monstrinho, seu lado obscuro, cheio de erros e defeitos. Ignorá-lo e fingir que tudo está bem é o mesmo que alimentá-lo. A gente precisa ter a coragem de olhar pro nosso coração e entender o quão estupidamente maus nós somos. Por muito tempo, eu me permiti viver da maldade. Acreditava que isso me definia e que nada poderia mudar. Mas... eu precisava daquela luz na minha janela pra entender que havia algo mais. O que eu quero dizer com isso é que... você não é tão bom quanto pensa, mas também não é de todo mal. Desprezar as próprias qualidades e talentos também seria burrice e eu não aconselho ninguém a viver assim. Fiz isso por muito tempo até entender que eu estava rejeitando as coisas boas que Deus colocou em mim. Sabe... — Ela começou a caminhar pelo palco, agitando-se. — Eu vivi muita coisa nessa escola. Aliás, ainda tô em choque por ter sido escolhida como oradora. É bizarro que mesmo com todas as besteiras que fiz, esse colégio sempre tenha reconhecido o fato de eu ser estudiosa e inteligente.

Victória suspirou. Fez uma pausa para recobrar o controle da voz, que começava a embargar. Algumas memórias do que viveu na escola dançavam em sua mente, o que só tornava a situação mais difícil.

Depois, prosseguiu:

— Bom, eu também quero aproveitar esse momento pra me desculpar com todos que feri. Uma pessoa machucada sempre acaba sangrando sobre os outros. Mas saibam que estou me curando dos meus traumas e, aos poucos, descobrindo coisas que gosto em mim. Falando nisso, eu peço que por favor, vivam a vida de vocês. Não deixem nenhum trauma lhes paralisarem. A vida fora do quartinho escuro é muito prazerosa, eu garanto. Não se cobrem tanto, todos somos humanos e ainda estamos aprendendo a viver. Tudo bem se a faculdade não for o seu sonho e você quiser abrir um negócio próprio, por exemplo. Não deixem a sociedade doentia envenenar os sonhos de vocês. Tenham coragem, meus amigos. Sejam honestos e andem de cabeça erguida. Descubram de que forma podem contribuir para melhorar o mundo e agarrem todas as oportunidades que tiverem. E quando saíram, hoje, pelos portões desta escola, pensem no futuro que desejam. Pensem no tipo de pessoas que querem ser. Nunca se esqueça que você vai cometer alguns erros pelo caminho, mas também não esqueça que sempre há uma luz na janela, esperando que você a veja e a segure.

Então, ela começou a olhar para todas as pessoas que fizeram alguma diferença em sua vida. Alegrou-se por estarem todos ali. Eles exibiam um brilho nos olhos e uma expressão de orgulho pintava seus rostos.

— Este ano, também tenho aprendido sobre o que é o amor. Acho que depois de muito tempo, entendi o que Deus fez comigo. Nunca fui o tipo de pessoa fácil de lidar e, certamente, não seria fácil aceitar que Jesus me ama. Talvez, por isso ele tenha encontrado um jeito de me mostrar isso, colocando não apenas uma, mas várias pessoas em meu caminho, que de algum jeito, me ensinaram sobre o que é o amor. Eu não sei se essas pessoas sabem o quanto foram usadas por Deus pra me alcançar, mas quero citar algumas coisas que aprendi.

"O amor é bom e sempre vence o mal com o bem. Perdi a conta de quantas vezes fui estúpida com algumas pessoas aqui e tudo o que elas tinham para me oferecer eram sorrisos, olhos gentis e conversas agradáveis, seja na minha casa vendo doramas bobos ou no restaurante da minha mãe. O amor também faz as pessoas enlouquecerem a ponto de me envolverem em abraços quentinhos e reconfortantes quando tudo o que eu tinha para oferecer era escuridão e meus traumas. Quando eu gritei, o amor me abraçou. Quando o empurrei, ele falou palavras doces no meu coração. Quando tudo ficou nublado, ele limpou minha mente. Quando eu tentei me afogar em meu sofrimento, ele me estendeu a mão e disse que ainda havia solução. Por muito tempo, eu acreditei que deveria merecer o amor, mas na verdade, não há nada que possa detê-lo. O amor me encontrou num beco sujo e sem saída e me acolheu em sua própria casa. Me alimentou e me deu roupas limpas. E eu acredito que é isso o que ele faz. Obrigada a todos que me amaram apesar das minhas falhas. 

"Aprendi muitas coisas, que levarei para a vida inteira. Acreditem, estou deixando essa escola não apenas formada no ensino médio, mas formada na vida, como um ser humano de verdade, capaz de rir, chorar, pular, enlouquecer e amar. Espero que todos vocês possam viver dessa forma também, afinal, é o jeito mais honesto de existir nessa vida".

Quando Victória finalizou o discurso, foi surpreendida por uma salva de palmas e assobios que pareciam durar uma eternidade. E no meio de tudo isso, olhou para a mãe, depois encontrou os olhos afetuosos do senhor Nicolau e foi percorrendo os olhos em Emily, Davi, Brenda e Eric. Pessoas estas que, de alguma forma, abraçaram o monstro que ela era a ponto de fazê-la deixar de ser. Pessoas que, apesar de suas falhas, foram capazes de lhe mostrar um amor genuíno, sem desejar nada em troca.

Pessoas que ela amaria para sempre. 

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