A morte tirava o sabor das coisas. Ao ficar ao nosso redor ela nos deixava perplexos. Inexistentes. Não havia prazer em nada. E mesmo que tivesse, a morte nos deixava se sentir culpados. Morrer é ato primordial da vida. Mas isso não significa que seja aceitável. Ninguém aceita a morte. No máximo tolera. E nesses últimos dias, ela resolvera ficar abraçada comigo. Presa as minhas costas. Como um demônio.
Eu supliquei. Deixa ele viver tantas vezes até parecer ridículo e mesmo assim continuei a suplicar. Deixa ele viver.
A morte trás reflexão. É o contrário da vida. Viver é sentir. Morrer é refletir. E eu repassava mentalmente tudo que eu vivi com Eros. A primeira vez que o vi. A última vez que o vi. O que teria feito diferente. O que eu não poderia ter mudado. A morte me enxia de medo, dor e arrependimento.
O telefone continuava tocando. Só me restava a obrigação de atendê-lo. A cada passo eu sentia meu mundo desabar sobre meus pés. A pressão cair. A imagem turvar. Um apito no ouvido. Os olhos da minha mãe me julgando. Falta de ar.
Eu respirava fundo. Tão fundo e pesado que a minha cabeça pesava. A imagem balançava. Eu estava ficando sem ar? O som irritante do telefone me dava náuseas. Eu só queria que ele parasse de berrar suas notas musicais.
Coloquei a mão sobre ele. A textura do material ainda era o mesmo, mas parecia tão diferente. Tão estranho. Deslizei o dedo sobre a tela. O chiado típico da espera. Alguém iria falar algo? Era agora? Eu inspirei fundo e segurei o oxigênio dentro do peito. A cabeça zumbia e eu precisava me manter firme.
- Alô? - a voz carregada de emoção saiu num muxoxo. Eu sentia que ainda não estava chorando. Mas que faltava muito mas muito pouco para trasnbordar. Uma gota. Uma palavra.
Msus olhos iam da minha mãe, que se prostou ao meu lado para tentar ouvir, para o chão. Porquê olhamos para baixo quando falamos no telefone eu não sei.
O xiado era alto. Havia muitas vozes no fundo. Passos e alguma criança dando gritinhos agudos. Eu esperei por dois segundos. Dois gigantes segundos. Segundos que abrigavam um mundo entre eles. Segundos que eu nunca esqueceria. Eu sabia que no labirinto da minha mente eu não recordaria dos detalhes visuais, como o desenho rabiscado de giz pela minha filha pendurado na geladeira com ímã. Ou as pantufas rosas e com furos da minha mãe. Eu provavelmente também não lembraria da ordem das palavras com exatidão. Mas eu sabia que jamais esqueceria o que estava sentindo. O coração pulsando explosivo dentro de mim. Bombeando sangue e latejando ao pé do meu ouvido. O ar que entrava com dificuldade pela boca por mais que fosse apenas sugá-lo. O medo. Essa sensação que fazia milhares de borboletas baterem dentro da minha barriga e me fazia duvidar se eu tinha ou não vontade de ir no banheiro.
- Alô? - repeti mais alto. Dessa vez minha voz saiu mais limpa. Muito mais firme. Medo mascarado de coragem.
Minha mãe sempre falava que era preciso coragem. Coragem para seguir em frente. Coragem para não desistir. Coragem para arriscar. Eu nunca entendi essa sensação. Nunca entendi plenamente essa atitude. Eu não sabia se queria ser corajosa agora. Talvez fosse mais fácil não dourar a pílula. Engolí-la de uma vez. Então eu vivia presa na ambiguidade de não querer saber o que aquele telefonema me contaria e no desejo incontrolável de querer saber.
- Só me diz que ele está vivo. - eu cochichei tão baixinho que a minha mãe arregalou os olhos erguendo suas finíssimas sobrancelhas e pousou sua mão sobre o meu ombro. Ela não entendeu o que eu disse. Aos seus ouvidos foi apenas um runhido.
- Alô! Alô! - uma voz sibilante e feminina encheu meus ouvidos, entrou na minha cabeça e reverberou num eco por dentro de mim. Eu sentia meu coração gelar. - Aqui é do Hospital São Roque. Com quem eu falo? - a voz feminina parecia de radialista ou de programa de televisão. Limpa e cheia de vícios como as palavras pronunciadas com sílabas quase separadas. A velocidade em que acelerava no começo da frase e no final falava tão pausado.
- Tatiana. - meu coração estava gelada.
- Nós estamos ligando para avisar sobre o senhor Eros.
E então. Ao ouvir ela dizer o nome dele a barragem que eu segurava com tanta força dentro de mim se rompeu. Eu fungei e lágrimas jorraram pelo meu rosto. Meus músculos faciais se amontoaram na típica careta mais feia de choro. O lábios curvados para baixo. Os olhos vermelhos. A testa enrugada. E as mãos no rosto tentando limpar à água salgada que não parava de brotar.
- Ele morreu? - saiu quase como um ganido. Mas saiu. Eu não entendia como tinha ousado fazer essa pergunta. Mas era melhor saber de uma vez. Sim ou não. Eu estava esgotada. Depois de tantos dias me atormentando. Repetindo as cenas na minha cabeça. Mirabolando possibilidades. Calculando o incalculável. Eu só desejava agora terminar essa tortura. Sim ou não. Apenas esperava a resposta final. A que faria eu pousar o telefone na mesa, me encolher e talvez gritar de dor. Até que a minha mãe entendesse e abrisse seus braços para me segurar.
A garota não respondeu. Eu queria estar lá e xaqualhá-la. Pegar pelos seus ombros e balança-lá.
- Ele morreu? - minha voz saiu gutural. Eu queria a resposta. Estava com pressa. Furiosa.
Eu ouvi a respiração dela. Parecia que ela não estava entendendo o que eu perguntava.
- Senhora Tatiana. O paciente Eros acabou de acordar. Ele está no quarto comum. E pediu para que eu ligasse para te informar.
Por apenas um segundo eu segurei o grito. O berro de dor e de alívio que guardava lá dentro de mim, escondido no baú da minha alma. E então eu abri a boca.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh. - A vogal extendida até que eu perdesse a voz ou que o ar acabasse.
Minha mãe estendeu os seus braços para me segurar. Minhas pernas perderam as forças e com a visão nebulosa das lágrimas eu disse: - Ele está vivo!
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Eros
RomansaDepois de um casamento fracassado e uma gravidez não planejada, agora Tatiana aceita qualquer emprego para sustentar a sua filha. Ela é só mais alguém no mundo tentando neste momento sobreviver e seguir em frente. Depois de ser traída pelo pai de su...