CAPÍTULO 1

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LUCAS

As lembranças que tenho da minha infância são maravilhosas e considero um privilégio ter vivido tudo isso ao lado da minha família. Mas como não temos controle do nosso próprio destino, temo em dizer que a felicidade tornou-se cada vez mais distante do cotidiano familiar após o acidente. O meu pai era uma figura de poder onde quer que fosse. Ele não era muito de conversar e sim de ouvir. Ele conseguia te ouvir por horas se assim você desejasse, só para depois dar um conselho certeiro. Lembro de tentar ser como ele, até mesmo controlar meus impulsos em uma busca frenética de orgulho paterno. Contudo, essa não era a minha personalidade.

Lembro de um dia chegar e dizer ao meu pai que eu não tinha nenhuma capacidade de passar no vestibular de medicina e por isso desistiria da profissão e me contentaria em administrar os negócios da família, algo que eu nunca quis. O meu planejamento era começar da parte operacional, trabalhar no garimpo para conhecer a matéria prima e só depois de alguns anos ir assumindo, de forma gradual, a minha parte na empresa. O meu pai me ouviu durante toda a noite, acredito que eu tinha uns dezessete anos e estava concluindo o colegial. Ele ficou tão quieto, depois que eu descrevi todo o planejamento, que em dado momento eu pensei que a conversa morreria ali.

Foi exatamente nesse jardim, mais de dez anos atrás, mesmo parecendo que foi ontem, que eu tive um dos melhores momentos com meu pai. Eu esperei ansioso por qualquer metáfora que ele pudesse passar, já que ele amava contar histórias (provavelmente a maioria foi inventada da sua própria imaginação). Mas ele continuava quieto. Eu consigo lembrar da tristeza que eu senti com o silêncio, pois achava que era exatamente isso que ele queria de mim: que eu tomasse o meu lugar de primogênito e continuasse com os cuidados da Fazenda Ametista e que passasse esses cuidados para o meu filho mais velho e assim sucessivamente, como já acontecia há gerações. Por incrível que pareça, ele deu uma longa risada, enquanto plantava mudas de rosas que ele tinha comprado na estrada naquele mesmo dia.

Eu fiquei nervoso, apertei a cadeira de madeira que estava sentado e quis levantar, ir embora daquela casa. Eu desabafei para a pessoa que eu imaginava que me daria uma orientação correta, mas ao invés disso ele debochou da minha situação. Nervoso, levantei, empurrando para o lado a cadeira e fazendo-a cair.

- Você é tudo aquilo que eu imaginei que você seria quando soube que me tornaria pai. - Meu pai disse, quase como se jogasse essas palavras para o ar, cantarolando para o vento.

A noite quente da capital era incompatível com o arrepio que senti por todo o meu corpo em descobrir, em um momento de desespero, que o meu pai sentia orgulho de mim. Depois de plantar as rosas, ele levantou a cadeira do chão e sentou na minha frente , disse que não era uma questão de capacidade passar ou não no vestibular de medicina, era apenas uma questão de escolha. Os homens da nossa família escolheram cuidar da Ametista, eu não precisava ter essa escolha.

O meu pai gostava de se atualizar sobre as mudanças constantes da modernidade, e isso foi fundamental para ele retirar todo o peso que eu achei que eu tivesse que carregar e me concentrar apenas no vestibular de medicina. Meu Deus, como foi difícil. Eu me cobrava dia e noite em busca da perfeição. E graças a tanta ansiedade, os anos foram passando e a tão esperada aprovação tornou-se distante. O meu pai não desistiu de mim e certa altura ele precisou sonhar por nós dois.

O meu pai nunca soube que eu fui aprovado. Pois no dia que eu contaria a noticia, foi o dia do acidente. Depois disso ele não lembrava mais quem eu era. Depois disso eu precisei tomar para mim todas as suas responsabilidades. Depois disso eu desisti do sonho de salvar vidas. E depois disso eu passei a viver pela família.

Vendo o meu pai no jardim naquela manhã de sexta-feira, pude sentir uma tremenda nostalgia das nossas longas conversas e de como ele acredita no meu potencial. Eu queria tanto falar para ele sobre a dor que eu sentia com a perda do Luan. Dizer que eu tinha medo do que aconteceria com a criança que crescia no corpo daquela mulher, capaz de fazer todo o mau para si e para o bebê. Eu queria tanto que ele me desse uma palavra de conforto. Que ele dissesse que eu estava no caminho certo, que eu cuidaria bem do filho do meu irmão e que tudo, absolutamente tudo, daria certo daqui em diante. Que toda a dor que tivemos nos últimos anos, após o seu acidente, e agora com a morte do meu irmãozinho, um dia tornaria mais fácil de conviver.

1. Curando Feridas ✔️Onde histórias criam vida. Descubra agora