LUCAS
Despertei de um quase infinito diálogo interno após o apito da chaleira. Despejei com cuidado a água quente em duas xícaras com imersão de chá de camomila. Com uma colher pequena, comecei a mexer uma xícara e depois a outra, para o chá se misturar com o pouco de açúcar. O movimento rítmico era proporcional ao automático necessário, já que a minha mente percorria grandes caminhos. Eu queria explicar para Rebecca toda a situação da minha família, como funcionava o Conselho e o motivo que eu não contei antes sobre aquele plano infundado da minha mãe com a Thaís.
Eu não queria que a menina descobrisse de tal maneira que lhe provocasse tanta dor. Era apenas mais uma conversa fiada daquelas duas, algo que eu estava cada dia mais inclinado a não aceitar. Mas preciso explicar à Rebecca o que implica essa recusa ao casamento. Após gerações e gerações de primogênitos Varez, que cuidam das riquezas da família, eu seria restituído do meu cargo. Viveria como um familiar de linha colateral, sem as responsabilidades e vantagens de ser o administrador das nossas heranças.
Em um mundo diferente, onde a Rebecca não existia, não haveria motivo para eu cogitar a recusa à este casamento arranjado. Eu e a Thaís administraríamos à Fazenda Ametista, como todos os nossos antepassados. Talvez criaríamos o filho do Luan, fruto de alguma irresponsabilidade que ele certamente cometeria. Mas esse mundo não existia. Rebecca é parte da minha vida, me fazendo questionar até os meus mais puros preceitos.
A minha vida seria mais fácil, segura, cômoda, e provavelmente infeliz se eu não tivesse me voluntariado a cuidar dela. Pensando nisso, vejo que ela não seria um risco à minha mãe, essa parte foi uma imensa fantasia da minha mente que ainda não conhecia a Rebecca e a julgava mesmo assim. Dona Rosa conseguiria cuidar da menina naquela fazenda, e a certa altura, o meu casamento com a Thaís já estaria encaminhado e criaríamos a filha do Luan como sendo a nossa herdeira direta.
Mas cada parte desse plano absurdo fazia o meu corpo protestar. Tudo aquilo que parece simples, você deverá questionar. Não se contente com o óbvio, pois há algo além disso. No meu caso, esse algo era essa menina, capaz de fazer o meu mundo girar em questão de segundos. Eu precisava ser racional, pensar no que era o correto, tanto para a minha família quanto para a Rebecca. Sentaríamos naquelas poltronas, na sacada do meu quarto, e conversaríamos sobre todos os assuntos que um dia morreram no silêncio. Eu era capaz disso, eu conseguiria ficar ao seu lado e dialogar, sem deixar a emoção controlar a nossa conversa.
Peguei as xícaras com cuidado e repousei-as na mesinha ao centro das duas poltronas. O vento na sacada estava frio, mas a chuva tinha cessado. Resolvi buscar uma manta no closet, deixar disponível, já que a Rebecca conseguia sentir frio em dias consideravelmente "normais". Sentei na minha poltrona e comecei a bater o pé descalço no chão frio, estava ansioso e comecei a repassar a conversa que teríamos, como uma tentativa de controlar os meus sentimentos. Mas cada pontinha da razão escapou quando ela se aproximou.
- Eu nunca tomei banho de banheira antes e é a melhor sensação do mundo.
Rebecca sentou na poltrona ao lado, estava serena, com uma tranquilidade de dar inveja.
- Fiquei com receio da roupa não servir. - Disse, tentando puxar algum assunto, enquanto ela bebia o chá.
- Eu amarrei a calça na cintura com o elástico, já o blusão ficou muito confortável. Não sou magrinha como antes, Lucas. Olha o tamanho que está a minha barriga.
- Você está linda, Rebecca.
O elogio foi sincero e ingênuo. Mas senti o meu rosto arder de vergonha e escondi atrás da xícara de chá. Rebecca se alinhou na cadeira, puxando as pernas e se cobrindo com a manta. Ela olhava para o céu com curiosidade. Estava afastada da lateral da sacada, provavelmente não chegaria perto, mas o céu com diferentes tons de roxo após a tempestade, chamava a sua atenção.
A minha atenção era voltada à ela e não ao céu. Contemplava o seu rosto perfeitamente moldado, a sua boca cada vez mais rosada, os seus olhos escuros como o mais profundo oceano. Mesmo com os olhos fechados, eu poderia descrever cada traço daquela pintura. O seu cabelo úmido estava caído na lateral do seu ombro, deixando o lado esquerdo do seu pescoço totalmente exposto. Estava acostumado a ter tudo aquilo que eu queria, a fazer o que a minha vontade me cobrava, mas com ela era diferente. Não poderia levantar de onde eu estava e beijar o seu pescoço até alcançar a sua boca.
Não sei de onde vieram esses pensamentos. Eu estava louco, só pode. Era uma insanidade pensar aquilo.
Desviei o olhar, tentando me controlar. Não sei dizer o que havia mudado, mas o que eu sentia por ela não era mais como antes.
- Você disse que me explicaria tudo, estou aqui, pronta para saber como será o seu casamento perfeito ao lado da Thaís e criando a minha filha.
Ela não estava chateada, longe disso, tristeza era um sentimento que não era mais exposto ali. Rebecca estava irada, seu rosto estava ficando avermelhado, e eu conseguia me colocar na sua situação e entender o tamanho da sua raiva. Ela e a Thaís nunca trocaram uma frase amigável, ouvir essa plano maníaco, ainda mais atrás de uma porta, sem nenhum contexto, era entregar um bife rosado a um leão pronto a devorá-lo. Caramba, a comparação ridícula me fez rir, no pior momento.
- Você acha que eu sou uma palhaça? - Rebecca jogou a manta no chão e ficou em pé.
- Desculpa, eu estava pensando em outra coisa. - Tentei justificar, mas foi em vão.
Eu fiquei em pé, mostrando as mãos como um sinal de paz (foi o meu instinto) e dizendo isso realmente foi uma cena patética. Rebecca se aproximou e colocou o dedo na minha "cara".
- A minha filha não será criada por aquela mulher. Eu posso não ser um exemplo para esse bebê, mas a Thaís consegue ser pior. - Rebecca se aproximou, suas palavras saíam como um sussurro. Apenas para deixar claro a sua ira, como se não fosse o suficiente a súbita ação, ela ficou na ponta dos pés. - E tem mais, você não vai se casar com ela.
Eu quero saber o por quê todas as tentativas de ter um diálogo normal com a Rebecca caíam por terra? Eu passei o banho inteiro, o preparo do chá e alguns minutos sozinho na sacada, passando e repassando os pontos da nossa conversa, mas nenhum planejamento era suficiente. Rebecca conseguia arrancar toda a racionalidade que eu sempre tive, e colocar no lugar algo que eu nunca experimentei antes: uma chuva de sentimentos embaraçosos que me fazia me auto comparar com um adolescente espinhento apaixonado.
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Ahhhh e aí meus amores, como estão?
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1. Curando Feridas ✔️
Random"Rebecca entrou na minha vida em uma noite de tempestade. Na primeira vez que eu a vi, eu sabia que ela me marcaria por toda a eternidade. Foi através dela que o meu irmão, o meu melhor amigo, conheceu o mundo mais sombrio e solitário que existe: as...