Nunca achei que se entrasse nessa ideia de encontrar a magia e trazê-la de volta, tudo seria completamente fácil. Mas não passou pela minha cabeça as consequências que isso poderia trazer pra mim. Acho que quando você perde alguém, sua mente demora pra absorver a informação como verdade.
Eu ainda não acredito.
Estou sentada dentro da banheira cheia de água morna do quarto de Stella. Não me preocupei em tirar as roupas. Apenas entrei e puxei meus joelhos até meus peito, ficando naquela posição encolhida. Fico pensando que ele vai aparecer em breve. Tenho quase certeza que vai passar por aquela porta e brigar comigo por eu ter me metido em confusão. Fico me perguntando se há alguma chance de ele sobreviver aquilo. Não consigo sentir que ele morreu. Não consigo acreditar.
—Eu disse que queria ficar sozinha. —Murmurei, encarando a água um pouco suja de sangue das minhas roupas.
Jacks passou pela porta do escritório e entrou no cômodo que eu estava, me olhando por longos segundos, como se estivesse absorvendo minha imagem dentro da banheira, com as roupas encharcadas e o cabelo grudado na testa. Seus olhos pararam em um ponto acima dos meus joelhos, na minha garganta marcada com o poder de um elemental do fogo.
Fiquei encarando Jacks, já que ele parecia muito tentado a ficar ali, só me olhando. As asas negras estavam recolhidas atrás do corpo dele, com as pontas aparecendo atrás dos seus ombros. O cabelo curto estava molhado, deixando ainda mais evidente os dois pares de chifres. E o rosto perfeito, dono daquela beleza rara que só os peregrinos possuíam, parecia iluminado com as chamas das tochas ao redor.
—Eu disse que queria ficar sozinha. —Repeti, umedecendo os lábios com a língua quando ele se aproximou, com uma toalha branca surgindo em suas mãos. —Não quero sua ajuda.
—Não perguntei se queria. —Retrucou, ficando de joelhos ao lado da banheira. Olhei para aquele par de olhos prateados, vendo a expressão dura dele se suavizar. —Sei que está de luto. Mas ficar sentada aí não vai trazê-lo de volta. Tenho certeza que Cal não ia querer que você se afundasse nesse sentimento.
—E o que você entende de luto? —Indaguei, sentindo a raiva criar algo ácido dentro de mim. —Você nem gostava dele. Sempre ficava falando que ele iria me trair e que irmãos não eram confiáveis. Você nem entende nada, Jacks!
—Tenho 138 anos, Alita. Posso não ser tão velho como você, mas já perdi pessoas importantes. —Afirmou, pressionando os lábios na tentativa de conter uma enxurrada de palavras. —Sei o que é estar de luto. Acredite ou não, eu sei.
—Bem, guarde seus conselhos pra você. Estou muito bem aqui. —Escondi meu rosto nos meus joelhos, escutando ele soltar um suspiro pesado, se sentando de vez no chão ao lado da banheira. —Quero ficar sozinha. Se não sair, vou dar uma ordem a você.
—Bem, vá em frente, vossa graça. Me de uma ordem. —A voz dele saiu um pouco mais leve que o normal. —Não vou deixar você sozinha.
Meus lábios tremeram e as lágrimas inundaram meus olhos de novo.
—Por que me chama dessa forma? —Indaguei, sentindo minha voz sair quase como um sussurro. —Por que "vossa graça"?
—Por quê? —Ele repetiu, e eu senti seu sorriso, mesmo não podendo ver. —Me lembro de você perfeitamente na noite em que me prendeu. Correndo penas ruas com uma arma na mão. Dando ordens sem parar. Puxando o gatilho sem hesitar. Nasceu pra ser uma líder, Alita. Já deve ter ouvido muito isso. Mas, você nasceu pra isso.
Ergui os olhos, vendo Jacks encarando uma das tochas que estava presa na parede. Sua expressão estava vazia e parecia longe daquele cômodo onde estávamos. Parecia flutuando em alguma lembrança triste.
—Eu ouvia isso apenas de Cal. A maioria das pessoas me odiava no poder, porque achava que eu era incapaz. —Sussurrei, vendo a mandíbula dele ficar tensa por alguns segundos. Esperava que ele olhasse pra mim, mas ele não fez isso.
—A maioria dos homens não gosta de pensar que uma mulher é mais forte e capaz que eles, porque sentem que isso os rebaixa a um simples macho sem valor. —As asas dele arranharam o chão quando ele ficou de pé. —Mas não reconhecer o valor de alguém é um erro. Isso só deixa a pessoa mais forte.
—O que quer dizer? —Indaguei, percebendo que a última parte queria dizer muito mais do que aparentava.
—Venha. —Ele abriu a toalha, se virando pra mim com as sobrancelhas erguidas. —Temos decisões a tomar e ficar aqui não é uma opção.
Meus joelhos tremeram, mas fiquei de pé e sai da banheira. Jacks me entregou a toalha e saiu do cômodo, deixado que eu me trocasse.
[...]
Quando saímos da cabine de Stella, com uma versão mais apresentável de mim mesma, senti o peso dos últimos minutos caindo sobre meus ombros quando vi as montanhas congeladas que se aproximavam no horizonte. Nunca imaginei que conheceria Atlantis. Mas essa é mais uma das coisas que a minha ideia estúpida me trouxe.
Passei o lenço sobre meus cabelos úmidos, escondendo também meu pescoço repleto de marcas. Não incomodava tanto quanto no início, mas sabia que aquelas marcas provavelmente me seguiriam por longos dias até sumirem de vez.
—O que está acontecendo? —Jacks indagou, quando descemos as escadas e vimos o movimento confuso dos contrabandistas pelo navio.
—Alita? —Olhei para Stella quando ela se aproximou de mim. O rosto era uma máscara perfeita de frieza, como se ela não tivesse demonstrado o quanto a morte de Cal a afetou horas antes. Estava com Lori no ombro, silencioso e com os olhos grandes na minha direção. —Os homens de Cal estão se perguntando se você irá tomar o lugar dele agora.
Meu corpo ficou rígido e eu senti meu estômago se revirando milhões de vezes. Parecia que eu havia entrado em um mundo completamente diferente, mas com a sensação de já ter passado por isso. Mas eu já havia passado. Só que da última vez, era Cal quem estava no meu lugar.
—Não vou ocupar o lugar dele. —Afirmei, sentindo as lágrimas queimando dos meus olhos de novo.
—Tarde demais. Eu já disse que você era a nova líder deles. —Stella deu de ombros. —Era o que Cal ia querer.
—Você está falando sério? —Indaguei, quase me engasgando com as palavras.
—Os raposas do deserto são seus, Alitas. —Stelka afirmou, olhando pra mim por alguns segundos, antes de começar a se afastar. —Perdemos dois deles na prisão também. Disseram que eles caíram na água junto com Lila e Cal. Posso te apresentar os outros e...
—Quero falar com você. —Tallys apareceu do nada na frente de Stella, fazendo ela bater contra o peito dele e cambalear para trás.
—Estou ocupada. —Ela tentou desviar dele, mas Tallys se colocou na frente dela de novo, como uma parede de músculos. —Eu estou ocupada agora, Tallys.
—Quero falar com você agora. —Tallys afirmou, fazendo Stella cruzar os braços na frente do corpo e o encarar com uma expressão dura e infeliz. —Você sabia desde o início?
—Não sei do que está falando. —Stella balançou a cabeça negativamente.
—Não se faça de idiota, que nós dois sabemos que você não é assim. —Tallys rebateu, fazendo as bochechas dela ficarem vermelhas e seu rosto se contrair em negação. —Jacks pode sentir o laço, sabia? Eu perguntei pra ele, Stella. E ele me deu certeza absoluta de que você sabe.
Stella piscou algumas vezes, com a vermelhidão indo embora das bochechas e sua expressão voltar a ser dura.
—Não sei do que está falando. —Repetiu, muito calmamente. Tallys olhou pra ela com uma mistura de raiva e decepção, antes de erguer o queixo e dar mais um passo, que o fez ficar praticamente colado dela.
—Você é minha parceira.
Continua...
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Os Domínios do Deserto
FantasyNas terras do continente Esmeralda, muito se fala sobre os deuses capazes de ditar os dias e as noites, controlando o sol, a lua e as estrelas. Mas outros seres caminham por aquelas terras, reverenciando-os e convivendo com os deuses inferiores, que...