Quando acordei na manhã seguinte, com a luz do sol nascendo levando embora um pouco do frio, Jacks não estava mais deitado comigo. Não lembro quando dormi, mas sei que fiquei ouvindo a voz baixa dele no meu ouvido, até a escuridão me levar embora.
Sai de dentro do saco de dormir, me enfiando dentro do casaco e ajeitando o lenço sobre meus cabelos, enquanto empurrava com o pé mais algumas lenhas para a fogueira que estava quase apagando no meio da neve. A maioria dos homens ainda estavam dormindo. Tallys e Stella estavam grudados um no outro, apagados. Desviei dos sacos de dormir e dos que já estavam acordados, tomando seu café da manhã e fui procurar por Jacks.
A neve fofa sedia a cada passo que eu dava, enquanto eu entrava no meio da floresta cheia de árvores brancas. Enfiei minhas mãos dentro do bolso do casaco, parando de andar absorvi a visão das longas asas negras de Jacks no meio de toda aquela neve. Era um contraste e tanto. A pele dele era branca como a neve. Mas as asas e os chifres davam a ele um visual mais sombrio, até mesmo naquele lugar.
—Dormiu bem? —Indagou, com um tom de divertimento.
—Dormi. Obrigada por dividir seu calor comigo. —Afirmei, esfregando as bochechas para aquecer o rosto gelado, enquanto umedecia os lábios com a língua. —Aquela história que você contou ontem...
—Pensei que não tivesse ouvido. —Falou, começando a caminhar pela floresta, me obrigando a segui-lo.
—Eu ouvi. Estava sonolenta e praticamente apagada, mas ouvi. —Retruquei, vendo as asas dele se abrirem e fecharem, como se estivessem se alongando. Meu rosto esquentou quando lembrei de como elas me envolviam na noite de ontem. —As pessoas que fizeram aquilo... —Hesitei, tentando ter certeza que não estava pisando em um território perigoso. —Foram seus irmãos, não é? Foi isso que quis dizer quando disse que eles haviam o apunhalado pelas costas.
—Foi. —Confirmou sem titubear. —Eu era ou sou, não sei mais, o irmão mais novo de quatro. Quando se é um peregrino em uma família com muitos irmãos, você aprende desde cedo o que é ser competitivo e o que é desejar ser sempre o melhor da família. —Ele se virou, encarando uma árvore completamente congelada. Não com neve, mas congelada em cada minúscula folha. —Meus três irmãos mais velhos tinham essa coisa de competir para ver quem era o melhor. Eu, na maior parte do tempo, estava mais ocupado em ser apenas a melhor versão de mim mesmo e não o melhor de nós quatro. Não sei em que momento eles me consideraram uma ameaça. Tudo estava perfeitamente bem e depois já não estava mais.
Ele estendeu a mão, fazendo o gelo aumentar até formar uma estalactite em um dos galhos e então o arrancou, brincando com o gelo entre os dedos. A ponta da estalactite deslizou pelo seu polegar e eu vi a sombra de uma gota de sangue.
—Eles disseram que era apenas um acampamento entre irmãos. Ficamos em uma cabana perto do litoral, muito longe da nossa vila. Tudo estava bem, até eu acordar no meio da noite com o cheiro da fumaça e perceber que estava trancado sozinho lá dentro. —Ele riu, se virando pra mim com os olhos em chamas. —Eles me trancaram, removeram qualquer magia do ar e atiraram fogo, tendo certeza de que eu iria morrer queimado. O único erro deles foi não ter ficado lá até o final, para ter certeza que eu tinha morrido.
Engoli o nó que se formou na minha garganta, pressionando minhas unhas na palma da minha mão.
—Como conseguiu sair? —Indaguei, curiosa.
—Escalei a lareira. —Ele olhou pra mim e então desviou os olhos. —O espaço era pequeno demais pro meu corpo, por causa das asas. Tive que... tive que deslocar à direita pra conseguir caber e escalar.
Um calafrio percorreu meu corpo quando pensei no quanto aquilo deve ter sido dolorido pra ele. Me lembro das suas palavras contando sobre quando levou o tiro e foi preso. Mas com certeza aquilo foi pior do que qualquer tiro que eu desse nas suas asas.
—Quando sai, não conseguia voar. Então me arrastei até a vila mais próxima e me escondi, conseguindo qualquer pequeno fio de magia para curar minha asa. Roubei comida e roupas... —A estalactite na mão dele se quebrou no meio, um pouco manchada de sangue. —Quando estava curado, voei para longe de Atlantis. E uma semana depois, conheci você e fui preso.
Meus ombros se encolheram, mas não era de frio. Meu estômago se revirou de vergonha e arrependimento, mesmo que eu soubesse que naquela época estava fazendo a coisa certa, hoje é diferente.
—Sinto muito por isso, Jacks. —Afirmei, com os lábios trêmulos. —Sinto muito por seus irmãos e sinto muito por ter prendido e atirado em você. Mesmo que já tenha dito isso, sinto muito mesmo.
—Eu sei. —Ele deu alguns passos, parando na minha frente, me observando com aqueles olhos prateados que pareciam uma lua brilhante. —Sinto muito pelo seu irmão. Ele não era uma pessoa ruim.
—Não, ele não era. —Senti meu peito se apertar, mas consegui erguer os olhos e encara-lo de forma firme. —Estamos indo pra sua vila?
—Estamos.
—E seus irmãos não sabem que você sobreviveu. —Falei o óbvio, vendo ele concordar com a cabeça. —Como acha que vão reagir?
—Não sei. Mas estaria mentindo se dissesse que não estou ansioso pra saber. —Ele ergueu uma das mãos, deslizando os dedos por um dos chifres. Observei o movimento, curiosa. —Mas independente disso, a chance que eles tinham pra me matar era aquela. Jamais terão outra.
—Devo me preocupar com eles? —Indaguei, parando ao lado de Jacks, mas olhando na direção oposta que ele.
—Sim. —Ele girou a cabeça e olhou pra mim, antes de segurar meu pulso, deslizando a mão até que seus dedos tocassem os meus. —Você com certeza deve se preocupar com eles.
Continua...
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Os Domínios do Deserto
FantasyNas terras do continente Esmeralda, muito se fala sobre os deuses capazes de ditar os dias e as noites, controlando o sol, a lua e as estrelas. Mas outros seres caminham por aquelas terras, reverenciando-os e convivendo com os deuses inferiores, que...