Cap. 102 - Colo de Deus

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O medo era tão grande quanto o primeiro dia no psicólogo, talvez fosse até maior. A Paulinha segurava com força a minha mão, era uma sensação boa ter alguém que me protegesse, a gente faltou a faculdade naquele dia, o único horário próximo era no turno da manhã e já que eu tinha que fazer aquilo o ideal era que fosse o mais rápido possível, não ia aguentar tamanha ansiedade. Aquilo era mais assustador que ir para a escola, mais até que o psicólogo, eu comecei a chorar e não sabia como parar. A Paulinha só me abraçou e me deixou chorar quietinha no colo dela, quando a recepcionista chamou o meu nome senti um frio na espinha.

- Entra comigo?

Acho que nunca na minha vida estive com a guarda tão baixa, orgulho não significava mais nada ali, a gente se vê obrigado a se curvar diante das próprias fraquezas e aos poucos vai percebendo que não tem nada de errado nisso, que não é vergonha e nem fraqueza, fraqueza mesmo é nunca reconhecer que precisa de ajuda. Ali eu soube que era preciso muita força para enfrentar todos os meus medos e pedir ajuda e só então percebi que eu não era aquela garota fracote que as meninas da escola me faziam acreditar que eu era, tinha muita força ali! Por um instante me senti orgulhosa de mim mesma, pensei no Alex e no quanto ele estaria orgulhoso em me ver dar um passo tão grande, pensei no Nando e nas coisas que ele me dizia " Não tem problema se você não conseguir, o importante é que você está tentando e isso é um avanço muito grande." Não é que o Nando me deixasse mais segura que o meu irmão, mas com ele eu não me sentia tão obrigada a conseguir, ele não esperava que ao fim de tudo eu fosse uma pessoa normal, para ele bastava que eu tentasse ser.

O tão assustador monstro/psiquiatra era só um velhinho de cabelos grisalhos, muito simpático e com um jeito tão calmo que fazia eu me sentir uma idiota por entrar na sala dele de mãos dadas com a minha melhor amiga e com a cara inchada de chorar.

- A primeira coisa que você precisa saber é que você não está aqui porque é louca ou nada parecido. No meu tempo as pessoas achavam que psiquiatra era só para loucos, mas o mundo já evoluiu o bastante para que você entenda que eu não estou aqui para te trancar num sanatório e jogar a chave fora.  - deu um meio sorriso enquanto olhava a minha ficha sobre sua mesa - A doutora Flávia me falou de você, parece que você tem muita dificuldade para dormir certo?

Eu olhava para ele tão assustada, tão amedrontada que a voz quase não saia. Eu queria levantar e sair correndo, as minhas pernas pareciam ter vontade própria, era como se a qualquer momento elas fossem sair dali sem mim. O doutor Alberto esperava uma resposta, mas eu não tinha nada para falar.
Gentilmente ele pediu que a Paulinha se retirasse, explicou que era importante conversar só comigo e que também haveriam coisas que seriam mais fáceis para mim se não houvesse platéia. Talvez essa tenha sido a parte mais difícil daquela consulta, ver a Paulinha sair me deixava completamente desprotegida.

- Érin eu preciso que você converse comigo, sei que nesse primeiro momento parece assustador mas não é tão ruim quanto parece ok?

Fiz que sim com a cabeça.

- Por que não me fala um pouquinho de você?

A voz estava presa na garganta, eu queria contar tudo ao mesmo tempo em que eu queria sair dali correndo pra nunca mais voltar. Eu não sou loucaAs palavras ecoavam na minha cabeça, a lembrança de todas aquelas pessoas que me olhavam com pena achando que eu havia enlouquecido, o olhar piedoso dos coveiros do cemitério, os comentários maldosos na escola, os professores que me tratavam como se eu fosse uma criança especial, a pedagoga da escola que inutilmente tentava me fazer falar alguma coisa, tantas lembranças de uma garota que eu não gostava de ser... Eu só queria que aquelas lembranças todas parassem, que todo aquele sentimento acumulado parasse de doer, eu queria gritar e dizer que eu preciso de ajuda, eu queria gritar porque ninguém a minha volta percebia que todo o tempo, desde a minha infância até agora, eu precisava de ajuda, era um grito silencioso, um grito que me sufocava a anos, ali diante daquele senhor que em nada me parecia ameaçador, eu percebi que a vida inteira eu sempre quis pedir ajuda. Quando os professores me diziam que eu era muito esforçada na escola eu queria gritar e dizer que eu tinha muita dificuldade em aprender, quando a pedagoga da escola me perguntava o porque de eu estar sempre tão triste e sozinha eu queria gritar e dizer que o meu pai me batia, queria dizer que a minha mãe não me amava, que o meu irmão as vezes cobrava de mais, quando os coveiros me olhavam com aquela carinha de pena eu só queria gritar e dizer que estava com medo de morrer, que tinha medo de voltar para casa e apanhar de mais, que eu tinha medo de ver o meu pai matar a minha mãe, que eu tinha medo porque o meu pai não sabia se controlar, o tempo todo eu quis gritar e me calei, eu queria ajuda, mas não sabia como pedir. Agora eu quero ajuda, quero muito, mas por que parece que se eu contar toda a minha história aquele senhor vai me trancar num manicômio e jogar a chave fora? Eu quero ajuda, mas a que preço? Sacrificar o mínimo de vida normal que eu tinha? Eu só queria ir embora. As palavras mais uma vez ficaram presas no fundo da garganta, era como se eu pudesse ouvir o meu pai falando, antes de eu começar com o psicólogo quando era criança ele me ameçou.

Entre o amor e a vingançaOnde histórias criam vida. Descubra agora