- Ian, por favor, seja bonzinho. - eu tentava fazer ele tomar o xarope, mas era uma missão quase impossível.
- Tem gosto ruim, Liv. - ele desviava da colher toda vez que eu me aproximava.
- Se você tomar, comprarei chocolate para você. - como não teve jeito, iria na base do suborno mesmo.
- Do branco?
- Sim, do branco. - revirei os olhos, mas sorri.
- Ok, então. - ele abriu o bocão na maior simplicidade do mundo e tomou o líquido avermelhado.
- Mas olha só. - fiquei sorrindo, boquiaberta com a audácia dele. - Tente dormir um pouco, ok? Você não dormiu a noite toda.
- Ok, Liv. - ele me deu um beijo na bochecha e se ajeitou nos travesseiros.
Assim que saí do quarto, ouvi a campainha tocar. Corri até à porta, para que não fizesse mais tanto barulho.
Quando abri, tive uma leve surpresa. Era Norman:
- Oi! - eu disse um tanto esbaforida.
- Oi, Forbes. Tudo bem? - ele sorriu, mas seu sorriso estava diferente naquela tarde. Parecia nervoso.
- Tudo sim e com você?
- Estou ótimo. - ele me mostrou um embrulho colorido que tinha nas mãos. - Soube que o Ian estava doente. Trouxe para ele.
Abri mais a porta e o dei espaço para entrar:
- Ele vai acabar gostando de ficar doente e ser mimado desse jeito. - ele riu. - Ele acabou de ir dormir. Passou a noite em claro.
- O que ele tem?
- Acho que gripe.
- Ele tá muito ruim? - neguei com a cabeça.
- Não, ele só fica chatinho quando está doente. - Norman assentiu.
- Eu não quero incomodar, pode entregar quando ele acordar? - ele me estendeu o embrulho.
Uma ponta de chateação nasceu no meu cérebro e acabou no meu coração. Eu não queria que ele fosse tão imediatamente.
Eu senti falta de alguma coisa durante o dia todo e agora que ele estava ali, eu sentia como se a tivesse encontrado:
- Você não quer ficar?
Um sorriso se formou vagarosamente em seus lábios. Lindo, como sempre era.
Norman se sentou no sofá e arrumou alguns enfeites que estavam na mesa de centro:
- Posso te contar uma coisa?
- Pode. - eu também me sentei, na poltrona.
- Sabe aquela menina lá, aquela que brigou com a Tonya?
- Clarisse? - ergui a sobrancelha e ele assentiu:
- Ela me chamou pra sair. - ele tinha um ar de riso; não como quem estava debochando dela, mas como quem realmente achava a situação absurda.
- E aí?
- Eu recusei. - ele disse com um grau de obviedade.
- Você devia aceitar, Norman. - a gargalhada dele explodiu e se debateu nos quatro cantos da sala.
- Por quê?
- Clarisse é realmente linda. E talvez ao seu lado, ela pudesse evoluir e se tornar uma pessoa melhor. - o sorriso de Norman foi se desfazendo, como se fosse de um extremo de absurdo para o outro de incredulidade.
- Eu não namoro pessoas por pena, Forbes. E eu já te disse que você é a garota mais linda do universo. - o jeito que ele falou aquilo queimou. Queimou a minha pele por inteira, mas não doeu, de repente era bom sentir queimar, me fez sentir mais viva, fez meu sangue correr mais rápido. Foi muito mais intenso do que das outras vezes.
- Eu não sou e você sabe; o corpo dela é muito melhor que o meu. - dito isso, quase que automaticamente, os olhos dele me varreram.
Não foi maldoso. Foi quase totalmente inocente. Quase como um olhar de uma criança para algo que ela admira bastante.
Mas mesmo assim não me senti confortável. Quando pensei em todas as dobras, todos os volumes, todas as marcas que ele estava vendo, senti vontade de vomitar. Vontade de chorar. Vontade de deixar de existir, porque eu nunca teria um corpo agradável. Meu corpo nem lembrava o de Clarisse. A cintura dela era fina, e ela tinha seios médios com coxas longas e bonitas. Eu era um centro de gordura localizada e distribuída e por mais que eu tentasse, nunca conseguia perder aquilo. Por mais que eu não comesse, por mais que eu urinasse ou defecasse, eu nunca conseguia me livrar daquela maldita gordura.
Como alguém poderia se interessar por algo tão nojento e deplorável como eu? Como ele, um cara tão bonito, tão atraente, tão maravilhoso podia gostar de mim? Ele não conseguia ver? Ele não conseguia ver tudo aquilo? Ele estava só tentando ser gentil.
- Forbes? - eu não percebi meus olhos, mas quando ele tocou minha bochecha com a ponta de seus dedos, eu estava chorando. Estática. - O que foi? - ele se ajoelhou na minha frente e me encarou da forma mais doce que eu já vi na vida.
Ardeu dentro de mim porque eu não era nenhum pouco digna, mas naquele momento que ele me olhou daquele jeito, eu tive certeza de que eu gostava dele e do quanto eu queria ficar com ele. Do quanto eu queria repetir o episódio do jardim botânico. Eu tive certeza de que eu havia me envolvido intrinsecamente no meio dos sentimentos dele e que nada que eu fizesse agora poderia mudar isso.
- Por que você está chorando, Ollie? - deitei o meu rosto na mão dele.
"Ollie". Ele havia me chamado de Ollie. Eu não sei se aquilo foi bom ou ruim. Melhor definir dizendo que eu desci ao inferno e fui ao céu naquele mesmo instante. Exatamente ao mesmo tempo.
- Porque eu sou horrivel, Norman! - explodi e o primeiro soluço veio. - Eu sou enorme e eu detesto isso! Eu me detesto e detesto meu corpo! - meu tom estava descontrolado, meu olhos ardiam igual ao meu peito e minha garganta entupia em soluços.
Norman não me disse absolutamente nada. Ele só me afundou nos braços dele e eu tive uma crise irremediável de soluços lá dentro.
Quanto mais eu chorava e sacodia, mais ele me pressionava e me sustentava, tentando me controlar.
O desespero corria de dentro de mim e ele tentava sair pela minha garganta, como um grito embebido de choro, mas ele acabava se afogando e parando dentro dos meus pulmões de novo e de novo.
- Shhhh! - ele dizia, acariciando o meu cabelo e ainda me abraçando cada vez mais firme.
Meus olhos estavam fechados e o escuro era muito melhor do que ver o meu reflexo mórbido no espelho.
Aos poucos meu coração foi desacelerando e o tom suave de Norman foi acalentando o meu cansaço, mesmo que seu tom expressasse apenas uma única onomatopeia.
Quando o choro havia cessado e os soluços diminuíram, ele foi alargando os braços ao meu redor e eu fiquei livre.
Nunca foi tão ruim ser livre:
- Como você pode gostar de mim? Eu sou horrível. - repeti a pergunta da minha cabeça.
O meu tom era quase como o de um fantasma. Eu me perguntei como foi que ele havia me escutado.
- Não, não, nao. Você não é. Você é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida inteira, Olivia. - mais uma lágrima rolou porque eu sabia que era mentira. - Você não está vendo a realidade. Você está se vendo de uma forma que não é. - ele ergueu meu rosto, pegando no meu queixo.
Do que ele estava falando?
- Não sei como você consegue gostar de mim.
- Vem cá. - ele me puxou para outro abraço. Dessa vez bem mais aberto, mas ainda assim tinha algo muito bom ali. - Deixa eu ajudar você, Olivia. Deixa eu ajudar você a ver quem realmente é.
- Eu não entendo nada do que você diz, Norman. - as palavras dele se mesclavam umas nas outras e no final das contas tudo era sem sentido.
- Só me deixa tentar? Eu posso? - ergui meu rosto e encarei o seu por um breve segundo.
Os olhos de Norman eram tão bonitos. Naquela tarde, com o sol da janela batendo neles, eu vi uma alta mata lá dentro. Uma floresta de árvores longuíssimas, todas com um brilho resplandescente tilintando uma música que eu ouvia, mas que na verdade nunca existiu. Impecável.
- Sim. - ele me apertou ainda mais depois disso e deu um beijo bem no topo da minha cabeça.
Eu me senti aérea. Senti meus olhos pesarem. E sabe aquela sensação? De que seus olhos estão úmidos? Bem, essa foi a última coisa que eu me lembro de sentir.

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EAT ME
De TodoComo é desenvolver uma doença que não pode ser vista fisicamente? Como é saber que está doente e ao mesmo tempo não ter ciência disso? Como é achar que isso está sendo algo bom quando está destruindo o seu corpo? E o seu psicológico? Como é estar t...