Podia- se dizer que eu estava bem atrasada. Eu estava chegando na metade da segunda aula do dia e como eu suspeitara, não havia ninguém pelos corredores.
Pelo menos eu conseguira um bom resultado com a diretoria da escola de Ian. Meu discurso apelativo de quase vinte minutos tinha que surtir efeito.
E como eu havia dito, não havia ninguém nos corredores. Ou não deveria haver.
- Olá? - eu ouvi a voz dele ecoar pelo corredor.
Estávamos há uma boa distância e eu não podia distinguir muito bem seu rosto. Eu poderia facilmente confundir com Will, mas a voz era diferente. Era um pouco mais grave.
- Você é aluna? - percebi que quem quer que fosse, estava caminhando na minha direção e eu resolvi avançar também.
- Sou. Por quê?
- Estou perdido. - quando cheguei a uma certa distância, percebi que não o conhecia mesmo. Era aluno novo. - Vim de outra escola.
- Você tem seus horários?
- É isso aqui? - ele me entregou um papel com os horários.
- Sua primeira aula foi a de Geografia e a segunda é de sociologia. É ao lado da sala de geografia...
- É que na verdade, eu não vi a aula de geografia. Eu acabei de chegar. - ele comentou e eu ergui minha sobrancelha.
- Eu te levo na sala, então. - comecei a caminhar e esperei que ele me seguisse.
Me senti em um perfeito deja vu.
- Você não vai se atrasar para sua próxima aula? - ele fez a pergunta que intensificou aquela sensação enquanto caminhávamos.
- Assim como você, acabei de chegar. - afirmei. - E além disso minha sala é do lado da sua.
- Obrigado. - ele deu um sorriso educado e eu só assenti com a cabeça.
Senti que ele queria puxar assunto, mas não deu porque em menos de um minuto, havíamos chegado.
- É essa aí. - apontei a porta.
- Obrigado, de novo.
- Por nada. - eu disse antes de entrar na minha própria sala.
Minha intenção era entrar e me sentar, mas assim que pisei no cômodo, a senhorita Adams me deu um olhar fulminante:
- Senhorita Forbes, o que acha que está fazendo?
- Senhorita Adams, eu peço desculpas pelo meu atraso. Estava na escola do meu irmão, resolvendo alguns problemas...
- E você espera que eu acredite nisso? - ela me cortou com aspereza.
- Me desculpe. Não foi proposital. - pensei se aquilo era uma mentira, pois eu sabia que me atrasaria. - Será que eu posso ficar e assistir a aula?
- Não. Você vai pra detenção. - ela assinou um papel, que servia para quando algum professor te encaminhava para a detenção, e me entregou. - Quem sabe assim se lembra de não se atrasar mais para a aula?
Peguei meu papel, abaixei minha cabeça e fui tomando o caminho de volta.
E era claro que que aquilo gerou risinhos e era clarou que aquilo gerou chacota, mas eu não liguei, só segui até o fim do corredor.
A sala da detenção era imensa, cheia de cadeiras e você não podia fazer nada lá. Exatamente nada. A recomendação era que você olhasse para o quadro e pensasse no ser humano horrível que havia se tornado para estar ali. Não que houvesse alguém para monitorar.
Havia o Larry. Ele era o inspetor da escola e já era bem velhinho. Ele ficava sentado na mesa lá na frente, mas como não via e nem ouvia muito bem raramente dava bronca em alguém.
Eu gostava dele na verdade. Não era má pessoa.
Eu nunca havia ido para a detenção. Até agora.
Entrei na sala e entreguei meu papel ao Larry e ele me olhou com espanto:
- Você aqui?
- Me atrasei.
- Oi?
- Eu me atrasei. - aumentei um pouco o tom para que ele pudesse ouvir e ele assentiu:
- Sinto muito.
Acenei e fui para os fundos da sala; me sentei na última carteira, próxima à janela.
Deitei minha cabeça na minha mochila e pensei que me esforçaria para não dormir. Essa era outra regra da detenção. Você nao podia dormir, nem sequer cochilar.
Passaram-se o que eu contei ser dois minutos e a porta se abriu. Eu ganhara um companheiro?
É, eu ganhara. E era o garoto do corredor.
Ele deixou o papel com Larry e veio caminhando até o fundo da sala:
- Então nos esbarramos de novo. - ele cometou, se sentando na carteira ao meu lado.
- Pois é.
- Qual é o seu nome? - ele disse após me imitar, deitando a cabeça em sua própria mochila.
- Olivia Forbes. E o seu?
- Norman. Norman Redwater.
- É um prazer, Norman. - ele deu um sorriso de canto e aquilo pareceu muito com os sorrisos que eu me acostumara a dar.
Aproveitei o silêncio para fazer uma leitura dele.
Norman tinha olhos amendoados que eram impecavelmente irregulares. Eu nunca vira alguém ter olhos acinzentados na intensidade dos dele; de qualquer forma eu não podia constatar que eles fossem extaamente daquela tonalidade; talvez eles clareassem em algum momento.
Ele também tinha um cabelo curto, liso e que parecia ser extremamente fino. Era preto. Simplesmente preto. Além disso, ele não era tão branco quanto eu. Às vezes, eu achava que ninguém era tão branco quanto eu.
Mas fora todos aqueles detalhes tão comuns, Norman tinha uma peculiaridade: ele tinha uma cicatriz, um pouco acima de sua bochecha esquerda, por pouco o que quer que tivesse acontecido não tinha chegado no seu olho e o cegado.
- Que belo jeito de começar o primeiro dia, não acha? - ele de repente me trouxe à tona e tive que conter minha curiosidade sobre sua cicatriz.
- Você merece até uma estrelinha dourada. - ele sorriu de novo e eu refleti o gesto por aquilo ter sido tão besta. - Eu acho isso meio inútil.
- A detenção?
- A forma como eles aplicam a detenção. - corrigi e ele se atentou a mim. - Qual o sentido de me fazer perder mais duas aulas se estou ma detenção porque perdi uma?
- Você está certa. Não faz sentido nenhum. - ele sorriu de novo e achei que talvez aquele fosse um gesto habitual seu. Sempre sorrir.
- Se eu fosse fazer uma lista de todas as coisas que não fazem o menor sentido aqui... - pensei alto.
- Eu adoraria receber essa lista. Assim eu me prepararia. - eu estava entre um ponto que eu não sabia se ele estava sendo sincero ou se só estava sendo debochado.
- Por que se atrasou? - investiguei.
- Eu e minha mãe chegamos na cidade há duas horas. - foi quase como um dar de ombros. - Foi tão corrido que não tive tempo nem de comer alguma coisa. - enquanto dizia, ele tirava do bolso de sua mochila duas barrinhas de cereal. - Você quer?
- Não, obrigada. - respondi da maneira mais cordial que pude.
- Você já comeu hoje, mocinha? - ele ergueu a sobrancelha numa pose enigmática, enquanto mordia sua barrinha coberta de chocolate.
- Sim. Mas por que a preocupação?
- Minha mãe diz que é muito importante tomar o café da manhã.
- Acho que isso é modelo padrão de todas as mães. - sorri, porque a minha dizia a mesma coisa.
- Toma. Vai que você fica com fome mais tarde. - ele deixou a barrinha em cima da minha mesa e eu a encarei.
Houve um delay até eu pegá-la e guardá-la na minha bolsa, mas eu o fiz e agradeci:
- E por que você está aqui?
- Precisei passar na escola do meu irmão mais novo para resolver umas coisas. - vi o rosto dele mudar ligeiramente. Aos poucos, ele foi se impressionando:
- Você tem um irmão mais novo! Isso deve ser muito legal. Eu queria muito um irmão, mas já foi difícil de a minha mãe conseguir me ter.
- É bem legal. Você sempre pode ter domínio sobre o controle do vidro game. - ele riu junto comigo. - Você gosta de crianças?
- Na maioria das vezes, sim. Só não quando elas começam a fazer birra. Daí eu só devolvo para a mãe delas. - justo.
- Tive que ir na escola do meu irmão porque tinham uns pirralhos perturbando ele.
- Eu de verdade não consigo entender o que acontece com as crianças dessa geração. - ele falou como um grande filósofo. Bom, pelo menos aquele foi o tom que eu imaginava que um grande filósofo usava quando estava explicando alguma coisa. - As crianças estão diferentes.
- Sinceramente? Acho que é culpa dos pais. Com base nas crianças que eu vejo, noventa e nove por cento é chata porque os pais negligenciam. - fiz uma pausa, me lembrando dos exemplos das crianças no metrô. - Fazem a criança ficar quieta com o celular, não dão atenção nenhuma, colocam roupas de adulto nelas e acham lindo, acham bonitinho quando falam palavrão e estimulam cada vez mais a um amadurecimento forçado.
- Parece que temos uma crítica social aqui, hum? - isso com toda a certeza, foi um deboche.
- É só que isso me irrita. Do fundo do coração. - ele assentiu.
- Entendo. A maior parte das pessoas hoje nem tem condição psicológica para criar um cachorro, quem dirá uma criança. - achei a constatação dele válida. - Mas me diga, você explicou os noventa e nove por cento. E o outro um por cento?
- Aí é quando a criança nasce doida de pedra mesmo. - e ele riu. De novo.
- Você é líder do grupo de debate da escola, Olivia? - de repente surgiu aquilo e eu ergui a sobrancelha:
- Você não vai fazer uma daquelas cantadas vagabundas, vai?
- Não. - mas eu ainda não estava confinado nas suas intenções. - É sério. - o sorriso ainda perdurava, mesmo após tanto tempo.
- Não temos grupo de debate.
- Você seria uma ótima líder. - ele observou. - Você sustenta bem sua argumentação.
- Como você sabe? Tudo que eu disse teve uma resposta positiva da sua parte. - questionei.
- Sei lá, é uma impressão minha. Você tem jeito de líder.
- É a primeira vez que escuto isso, geralmente me chamam de nerd mesmo - ele sorriu.
- E há algo de errado com isso?
- Falando sério, eu só não ligo, sabe?
- Sei. Sei bem. - ele falou como se já tivesse experienciado algo nesse sentido.
Acabou que a melhor coisa que podia ter acontecido no meu dia era ter ido para a detenção. Por mais improvável que isso possa parecer.
Ficamos os oitenta minutos conversando. Indo de um a outro assunto aleatório e de repente não era mais como se houvesse um "X" na cara dele o tornando um desconhecido.
Foi a primeira vez que me diverti com algo tão simples e sutil em algum tempo.
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EAT ME
RandomComo é desenvolver uma doença que não pode ser vista fisicamente? Como é saber que está doente e ao mesmo tempo não ter ciência disso? Como é achar que isso está sendo algo bom quando está destruindo o seu corpo? E o seu psicológico? Como é estar t...