58 - As Olivias

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     - Boa tarde, Olivia. - disse Tatiana, assim que adentrei sua sala.
     - Boa tarde.
     - Pode se sentar. - ela apontou para o sofá e eu obedeci com a minha bolsa no colo.
     Achei que ela fosse se sentar também, mas ao invés disso, ela caminhou tranquilamente até uma mesinha que continha alguns utensílios de cozinha:
     - Você gosta de cappucino?
     - Eu nunca provei, na verdade. - fui honesta.
     - Você quer?
     - Não, obrigada. Já tomei café.
     Observei que o tom dela durante o convite se manteve ameno em todo o tempo. Exatamente como se ela estivesse falando com alguém normal, que não tivesse um distúrbio alimentar.
     Ela estava me oferecendo como ofereceria aquilo a Norman ou à Tonya.
     Aquilo institivamente me animou.
     - E então - ela veio mexendo sua bebida quente com uma colherzinha.
- Como se sente hoje?
     - Estável. - eu assenti. - Acho que normal, bem. - daí, eu já não sabia ao certo.
     - Ótimo. - ela pousou a xícara na mesinha de centro. - E o bloquinho? Você o trouxe?
     - Ah, sim. - me atentei em procurar o objeto dentro da minha mochila e quando o encontrei, o entreguei à ela.
     Tatiana foi passando página por página, resgatando minhas palavras no emaranhado de sua cabeça.
     Vi ela sorrir, pouco antes de terminar o bloquinho. Tive certeza que ela tinha lido os meus descritivos sobre o dia que saí com Norman.
     Eu tambem sorri, institivamente.
     - Ok. - ela repetiu, me devolvendo o bloco. - Você vai continuar com esse bloquinho e vai continuar relatando dia pós dia. - eu assenti, o guardando novamente na bolsa. - Como foi para você, Olivia? Escrever no bloquinho?
     - No início foi bem dificil; eu não queria ser sincera...
     - E depois?
     - Ficou mais difícil ainda, porque eu vi que dia pós dia, eu estava relatando o mesmo sentimento ruim. Não estava havendo nenhuma mudança e isso me fez temer um pouco.
     - Temer o quê? - ela provavelmente tinha a desconfiança sobre o que eu temia, mas queria me ouvir dizer; admitir.
     Achei que todas as coisas dali pra frente seriam daquela forma. Com várias sessões de admissão.
     - Eu senti medo de não conseguir passar pelo tratamento. - ela assentiu e eu aproveitei a deixa para continuar. - Considerei parar de escrever... Mas aí, eu tive um dia maravilhoso. - eu sorri, me lembrando. - E então, escrevi.
     - Depois desse dia ótimo, tiveram outros que não foram assim tão legais? - eu assenti energicamente. - Mas você se sentiu da mesma forma? Como se não estivesse avançando?
     - Não. Eu me senti estranhamente reconfortada. - Tatiana fez a mesma careta de confusão que eu faria se estivesse no lugar dela. - Era como se eu soubesse, que apesar dos impasses, os micro avanços também contabilizavam.
     Tatiana sorriu, como se eu tivesse enfiado a chave dourada direto na fechadura da porta:
     - Quer fazer mais alguma consideração sobre esse exercício?
     - Não.
     - Então, eu tenho outra pergunta para você. - eu me arrumei no sofá, apesar de aquilo não fazer o mínimo sentido. - O que você acha dessa sala?
     - Dessa sala? - eu olhei em volta.
     - Isso. O que você sente quando está aqui, agora? Quais são as emoções que essa sala te remete? - olhei em volta, analisando. - Pode ser sincera.
     - Ainda é estranho para mim estar aqui. - admiti, de novo, a olhando nos olhos. - Mas, sinto que é necessário; é para uma finalidade boa.
     Ela que assentiu dessa vez:
     - E você se lembra de uma das primeiras vezes que esteve aqui? - ela me deu a deixa para pensar, mas eu nem precisava de tanto.
     - Não gosto de me lembrar, na verdade. - desviei o olhar.
     - Tudo bem, não vamos forçar. - ela levantou as mãos para gesticular. - Mas você compreende a diferença entre essas duas situações? Consegue perceber a instabilidade de antes e o início de uma estabilidade que está sendo construída aqui?
     Percebi o que ela estava falando. Era outro panorama. Completamente diferentes. E não era só sobre momentos, mas era como eu me sentia, mesmo:
      - É como se fossem duas pessoas diferentes. A Olivia daquele dia e a Olivia de hoje.
      - Exato, mas ainda tem uma outra Olivia. - ela foi até um quadro branco que ficava atrás de sua mesa e começou a desenhar bonequinhos. - Essa, era você antes - ela apontou o primeiro bonequinho - Essa é você atualmente. - o boneco do meio. - E essa, - ela terminava de desenhar o terceiro boneco. - é quem você vai se tornar. A futura Olivia.
     Eu encarei aquele quadro e pensei em como raios eu tinha chegado naquele nível, de ter três pessoas diferentes dentro de mim? Para mim não era encorajador e sim um pouco triste.
     - Quem você quer ser, Olivia? O que você quer se tornar?
     Eu encarei o quadro e o sorriso pontual de Tatiana.
     Ela estava esperando mesmo por uma resposta?
     - Eu quero... Ficar bem.
     - Não, Olivia! Quem você quer ser? - o tom dela estava extremamente afobado e eu não estava gostando daquilo.
     - Eu quero... Quero ser...
     - Vamos lá, Olivia! Quem?
     - Por favor, não agita tanto assim. - pedi, mas isso só fez o sorriso dela aumentar.
     - QUEM, OLIVIA? - parecia grosseiro, mas ela estava sorrindo, quase gargalhando e naquele momento me perguntei como que alguém que é psicóloga podia parecer tão louca?
     - EU QUERO SER SAUDÁVEL! - também gritei, só que sem sorrir e de olhos fechados.
     Quando abri os olhos, ela estava sorrindo e escrevendo isso embaixo do terceiro boneco.
     Olhei para o quadro e ele me parrceu extremamente errado.
     - Achei que você diria 'magra'. - eu a encarei incrédula. Aquilo fora uma piadinha?
     Me questionei porque raios ela estava tão engraçadinha hoje:
     - Você está me zoando?
     - Não. Eu digo isso porque foi o que respondi quando minha psicóloga me perguntou. - meu queixo caiu e eu senti quase que uma dor física.
     - Eu não quero. - soltei de repente, enquanto me aproximava do quadro.
     - O quê
     - Ser uma nova Olivia. Eu não quero que existam dezessete versões diferentes de mim. - peguei o canetão de sua mão e desenhei um novo boneco, atrás do primeiro que ela havia feito. - Eu quero ser quem eu era antes de tudo isso. - bati o canetão na lousa, gesticulando. - A garota divertida que ria de qualquer coisa; a garota saudável que adorava doces; a garota que até quando tinha um dia ruim, achava um ponto bom nisso.
     Tatiana assentiu.
      - Você vai voltar a ser ela. Mas não extamente ela.
      Eu estava detestando aquele negócio de terceira pessoa.
      - O quê? - e o que ela acabara de dizer fazia algum sentido?
      - Você vai voltar a ser divertida, amar doces, ser otimista como era antes, mas não pode ser mais a mesma pessoa, porque você tem uma bagagem agora. Outras coisas estão acontecendo e você está amadurecendo. Não pode ignorae isso e se tornar a Olivia antiga, porque coisas aconteceram e você deve levar isso consigo.
     Eu entendera, mas ainda assim, era triste.
     Eu só queria ser a mesma Olivia de antes. E eu queria que minha mãe estivesse viva também.
     Achei que no fundo, no fundo o que eu queria mesmo era voltar no tempo.
     - E não existe essa de ser uma única versão. Todo dia, se não a todo momento, estamos em mudança. Você não é mais a mesma Olivia de dois minutos atrás, porque agora você tem outro conhecimento.
     Eu odiei aquela ideia. Por algum motivo não me deixava nenhum pouco feliz, mas não falei nada.
     - Durante o seu tratamento, quero que pense em como você está progredindo para a nova Olivia. O que você está fazendo que está te impulsionando, sabe? - assenti. - Não deixe a antiga Olivia te prender; você não é mais ela.
     Eu assenti não totalmente acostumada com a ideia.
     - Isso não me agrada.
     - Também não me agradou quando eu descobri. Mas agora já me acostumei. - respirei fundo e apenas a encarei.
     Aquele exercício seria mais complicado, porque eu queria voltar a ser exatamente quem eu era antes da doença, antes de a minha mãe morrer, mas eu não podia. Porque aquela Olivia não estava mais lá.
     Ela estava morta.

  

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