1 - O Despertar

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Pedro acordou com um estranho cansaço. Abriu lentamente os olhos e começou a olhar o ambiente do quarto onde estava. A luz do sol que entrava pela janela com a cortina entreaberta, não o deixava ver direito o quarto, uma leve dor de cabeça o incomodava. Respirou fundo, afastou o lençol que estava sobre o seu corpo e se sentou na beirada da cama de madeira herdada por sua mãe.

Olhou para a mesinha de cabeceira, pegou o celular e viu que passavam oito minutos das sete horas da manhã, definitivamente era como se não tivesse dormido nada. Levantou-se da cama e seguiu pelo corredor da antiga casa em que morava junto com sua mãe, seu pai, uma tia, irmã de sua mãe que nunca havia se casado e seu avô já muito doente. Havia dois anos que ele estava em uma cama sem conseguir sequer se levantar. Pedro entrou no banheiro, olhou seu rosto no espelho, já com a prata bastante desgastada, e tentava lembrar de algo que não sabia exatamente o que era, talvez o que tinha sonhado, mas nada vinha à sua mente. Somente a sensação de que o sonho não tinha sido algo bom. Abriu a torneira e um primeiro jato de água turva, suja de ferrugem dos velhos canos da casa, saiu e sujou um pouco a pia de louça branca, já trincada e desgastada pelo tempo de uso. A água da torneira foi clareando e ficando aparentemente limpa. Ele pegou a escova de dente azul turquesa, com as cerdas abertas pelo uso que estava dentro do armário acima da pia, colocou um pouco de creme dental e escovou os dentes. Apoiado com os braços sobre a pia, lavou a escova e, ainda com a torneira aberta, pegou um pouco da água com as mãos e molhou o seu rosto, como se para tentar lhe acordar. Levantou os olhos, se ergue e tirou o pijama, deixando-o no chão do banheiro, um velho hábito da infância que nunca conseguiu deixar, e caminhou até o chuveiro.

Fechou a cortina de plástico transparente que protegia o resto do banheiro da água do chuveiro e abriu o registro se afastando um pouco, imaginando que o mesmo tipo de água suja que saiu da torneira da pia pudesse também sair do chuveiro e cair sobre ele.

Começou molhando as mãos na água já limpa que caia. Pegou o sabonete e entrou sob o jato do chuveiro de água quente, agora quente, deixando com que ela caísse sobre seu corpo como se pudesse lavar a própria alma. Queria apagar da cabeça todo e qualquer vestígio de algo ruim que pudesse atrapalhar seu dia. Uma lembrança de sonhos ou pesadelos que tivesse tido na noite anterior. A água caindo sobre sua cabeça e escorrendo por seus olhos parecia fazer com que pequenas lembranças de pedaços do sonho que havia tido, começassem a se formar. A água escorrendo pelo seu rosto, fazia desenhar outro rosto em sua mente. Um homem, um senhor, já idoso. Não sabia quem era, mas o rosto daquele homem do sonho lhe parecia estranhamente familiar. Um rosto marcado pelo tempo, pelo sofrimento.

De repente tudo se tornara muito nítido. Ele estava em um mangue, um pântano.... Uma leve neblina pairava sobre o ar, como se fizesse parte eternamente daquele cenário. Estava escuro, mas era possível ver uns poucos pontos de fogo espalhados pelo chão, como se fossem pequenas fogueiras esquecidas por alguém que tivera que sair às pressas, abandonando tudo. Pedro olha para os lados, nervoso, não encontra nada. Não sabe como chegou ali. Seus olhos tentam se acostumar com a escuridão. Olha para o alto e não vê estrelas, não vê lua, não vê nuvens.

Nada além da escuridão.

Ao longe ele pode perceber algumas poucas árvores mortas, secas, retorcidas, presas a pedras enormes cobertas de limo. Ao lado de uma das árvores está um homem. Ele parecia ser o único que, além de Pedro, estava de pé. No chão algumas figuras disformes, como se fossem homens e mulheres mutilados. Alguns sem pernas, outros sem os braços ou partes do torso. Panos e farrapos cobrem esses seres que rastejam em busca do nada. Parecem precisar rastejar para evitar um sofrimento ainda maior. O homem que está de pé está parado, olhando em direção de Pedro que tenta, mas não consegue enxergar seu rosto.

- Ainda não é seu momento, volte agora.

O vidro de xampu que estava em sua mão cai no chão do banheiro. Pedro abre seus olhos que tentam se acostumar novamente com a claridade da manhã que invade o banheiro.

Ele pega o xampu do chão, coloca em uma cesta que está presa na parede e fecha o chuveiro, pega a toalha e começa a se enxugar tentando se lembrar de mais alguma parte do sonho, tentando se lembrar do rosto do homem.

Pedro desce as escadas da entrada da casa e vai até a porta. Sai na rua e segue em direção ao carro que estava estacionado perto da esquina, casas antigas não tem garagem, e a casa onde Pedro morava com os pais e o avô, foi construída no início do século passado, na parte mais antiga da cidade. Ele entra no Palio vermelho, que ganhou do avô quando esse decidiu não ter mais condições de dirigir por culpa da diabetes que há seis anos começou a lhe tirar as forças das pernas e agora o deixava praticamente, o dia inteiro, deitado em uma cama no quarto do andar de cima do velho casarão. Pedro liga o rádio e segue em direção ao banco onde trabalha como caixa, a sua agência fica do outro lado da cidade e ele sabe que o trânsito da sua casa até o trabalho vai estar bastante complicado. Pedro mora na Cidade Velha, o primeiro bairro de Belém, suas casas com fachadas de azulejos portugueses, agora quebrados e sujos, ruas estreitas e calçadas curtas lembram muito o centro antigo de Lisboa. Ele segue pelas ruas ainda tentando lembrar o sonho daquela noite, no rádio tocava uma música antiga "Smoke Gets In Your Eyes" ou algo assim, mas ele não estava prestando atenção à música, nem à cidade e nem ao movimento das ruas naquela manhã de segunda-feira. O domingo anterior havia sido estranhamente diferente, Pedro havia acordado com uma estranha sensação de que sabia que algo de ruim estava prestes a acontecer. Seus olhos quase fechados pelo cansaço, não escondiam essa sensação. Seus ombros passaram o domingo inteiro caídos, demonstrando na postura todo o peso que ele estava carregando em sua mente.

- Pedro, o que você tem? Por que você está assim? – Perguntou sua mãe, Francisca, quando ele a encontrou ainda no domingo perto da hora do almoço.

- Não sei, acho que não dormi direito. – Era a segunda noite que acontecia isso. O sono não estava mais o mesmo e ele não conseguia entender o motivo. Sua tentativa de lembrar-se do sonho da noite de domingo foi tão infeliz quanto à tentativa de descobrir o motivo do seu cansaço da noite anterior. Mas Pedro estava se acostumando ao cansaço. Sua boca abria sem ele conseguir controlar um bocejo que insistia em sair a cada parada mais prolongada no trânsito. Passava suas mãos na testa, como se isso pudesse ajudá-lo a se manter acordado. Ele continuava atravessando as ruas sem perceber exatamente para onde estava indo, ao cruzar uma esquina, sentado ao seu lado aparece um homem de mais ou menos 70 anos, com o rosto sofrido e as roupas estragadas e desgastadas.

- Bem-vindo ao meu mundo! - Fala o homem para Pedro que, assustado, perde o controle do carro e bate em um ônibus que arrasta o carro vermelho por uns quinze metros e o joga contra uma árvore. Pedro é jogado dentro do carro como uma marionete descontrolada, os braços rijos e os punhos cerrados tentam segurar o volante como se pudessem impedir o impacto que estava por vir. Suas pernas ficam tesas e empurram o chão do carro fazendo força para segurar o resto do corpo contra o banco. Seus ombros tensos, seu rosto assustado, um grito rompe o ar, mas é escondido pelo barulho dos vidros das janelas quebrando e da ferragem do carro se rasgando contra o asfalto quente daquela manhã de julho, o carro se arrasta no chão até se chocar contra o tronco de uma árvore que estava plantada em um canteiro na calçada.

Pedro abre os olhos lentamente e sacode a cabeça como se tentasse colocar os pensamentos em ordem. Seu corpo dói. Um pouco de sangue escorre pela testa e vai em direção à boca. Ele respira fundo e tosse espirrando o sangue. Começa a passar as mãos pelo corpo como se estivesse tentando descobrir uma ferida, um osso quebrado ou um jorro de sangue que pudesse denunciar algum problema mais sério. O carro está de lado no meio da rua. Pedro, com certa dificuldade solta o cinto de segurança e cai contra a porta que estava próxima ao chão. Os pedestres que estavam por perto vêm em direção ao carro para tentar ajudar, perguntam como ele está? Se está sentindo algo? E mesmo sem entender exatamente o que todas aquelas vozes perguntam, Pedro acena com a cabeça que está bem e tenta se levantar para sair do carro. Ele olha para o alto e vê a janela da porta do passageiro do carro quebrada, mas não tem forças para se levantar até lá, ele escuta uma voz.

- Protege teu rosto que eu vou quebrar o para-brisa.

O barulho do vidro laminado não querendo ser quebrado estoura dentro da cabeça de Pedro, uma, duas, três vezes, até que o vidro cede. Ele solta o cinto de segurança e, antes de ser puxado para fora do carro, olha mais vez e percebe o mesmo homem de 70 anos que falou com ele antes do acidente, desaparecer lentamente enquanto mantinha seus olhos fixos para Pedro.

- Eu volto.

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